• breve ensaio sobre autonomia

    Eu não me tornei uma pessoa independente por querer. Eu me tornei uma pessoa independente por precisar. E quanto mais velha eu fico, mais percebo os problemas dessa estratégia de sobrevivência na minha vida. A começar pelo sofrimento excessivo que eu sinto quando preciso pedir algo. Venho de uma casa de mulheres independentes; também, sem romantismo nenhum nisso. Minha avó teve que alimentar cinco filhos quando o marido ficou desempregado, minha mãe desejava garantir meus estudos mesmo sem receber pensão.

    Um marco na minha independência certamente foi o dia em que fiz meus primeiros arroz e feijão, com direito a panela de pressão, lá pelos 11 anos. Eu podia ter ido à casa da minha avó, no quarteirão de baixo, almoçar. Mas pedi pra ela me ensinar por telefone o que eu tinha que fazer. Deu certo. No ano seguinte, passei a ir desacompanhada para a escola. E eu sei que foi mais ou menos nessa idade que eu andava pelo bairro de bicicleta, ficava horas dando volta na praça da igreja, sozinha.

    Acho que eu teria preferido, se pudesse, não ter esse impulso tão grande e sempre latente de independência. É bonitinho pensar numa pequena Bárbara cortando cebola, espremendo alho, aprendendo a refogar algo. Mas não consigo evitar pensar o quão gostoso deve ser se sentir cuidada. Se sentir cuidada sem imaginar, de tempos em tempos, que está estorvando.

    Porém, ao mesmo tempo em que problematizo os porquês e as consequências da minha independência precoce, sinto que a minha autonomia é um grande valor para mim. Então, essas duas palavras (autonomia e independência) parecem se dissociar e ter sentidos muito distintos.


    Talvez eu deva fazer uma pequena pausa no texto antes de prosseguir. Já faz muito tempo que eu penso sobre autonomia. Sobre ela ser de fato um valor para mim e um objetivo constante. E só nessa semana me ocorreu que talvez autonomia e independência não sejam sinônimos. Que enquanto busco caminhos para me realizar através do meu ser autônomo, adoraria encontrar formas de aprender a pedir ajuda, a pedir carinho, a pedir cuidado. Que a minha autonomia possa conviver com as minhas dependências com relação às pessoas de que eu gosto, e admiro.


    Nos meus anos estudando feminismo e escrevendo sobre direitos de mulheres, sempre me caiu muito mal umas expressões da moda. Empoderamento, principalmente. Soa estranho, e não garanto que tenha tido seu sentido esvaziado pois não tenho certeza se já houve um sentido semântico na palavra com o qual eu concordasse. Para mim, o poder deveria, sob qualquer circunstância, ser questionado. Mesmo que fosse para, depois de enfrentado, ser aceito como legítimo. Mas eu não queria disputar o poder com os homens. Eu queria que esse poder deixasse de existir. (até porque, não são todos os homens que realmente têm acesso ao Poder; mas isso é assunto pra outro texto).

    E, quanto mais eu refutava empoderamento e todos os seus usos em campanhas publicitárias, mais eu entendia o lugar que a palavra autonomia ocupava nos meus posicionamentos políticos. E talvez eu só pare agora para escrever isso (escrever é me organizar) por conta dos acontecimentos dos últimos meses. Principalmente pela minha viagem ao Vale do Ribeira e aos resultados da eleição presidencial.

    É fácil aceitar que o governo de Jair Bolsonaro foi baseado em morte e destruição. Mas, para chegar até esse objetivo, ele (o governo, não o Jair, que acho incapaz de desempenhar qualquer ideia com método) teve que minar autonomias. De diferentes povos, mulheres, crianças, doentes. Ao tratar quilombolas como animais, indígenas como incapazes, mulheres como objetos, doentes e aposentados como problemas, o governo atacou a sobrevivência e a autonomia de cada uma dessas categorias (sem falar em todas as outras coisas horrorosas como cortes em pesquisas, a volta do país ao Mapa da Fome, a política de extermínio na pandemia).

    Ir ao Vale do Ribeira (sozinha, como costumo viajar) me mostrou, no entanto, os caminhos em que a autonomia e a interdependência se cruzam. Interdependência, porque não é independência e prevalecem relações de reciprocidade, de troca. Viajar sozinha faz com que eu seja obrigada a me abrir a favores, a permitir uma fragilidade que escondo na minha cidade. Não vivo independência absoluta quando viajo só. Dessa vez, de um dia para o outro e através de favores de pessoas que eu não conhecia, consegui uma carona que me levaria ao Petar (Parque Estadual e Turístico do Alto Ribeira) e consegui também uma cama para pernoitar.

    Eu tive a chance de acompanhar uma visita pelas trilhas e cavernas do parque com pessoas da região, guias das comunidades remanescentes de quilombos que trabalham com turismo por ali. Um funcionário do parque explicava a uma moça mais jovem do que eu os meandros para conseguir melhorias no seu território e aquilo me pareceu tão singelo. Não que eu tenha algum carinho específico por preenchimentos de formulários e planilhas, mas me parecia que a explicação delegava a ela escolhas, possibilidades. Um negócio besta, um jeito fácil e barato de fazer uma escadaria num morro, por exemplo, cuja decisão caberia a ela e aos que precisariam daquilo.

    A autonomia habita esse espaço em que as pessoas – os indivíduos, mas também os coletivos; povos, comunidades – têm o direito de escolher o que acham melhor. O resultado das eleições trouxe a mim e aos meus uma leveza que não sentíamos há anos. O autoritarismo como projeto pôde ser coletivamente refutado; e o que se opôs a ele foi, antes de mais nada, a defesa da autonomia (para pensar, ser, agir).

  • o que cabe num território

    mão com urucum aberto

    O que é um território? Eu me mudei para um apartamento de 30 metros quadrados. Alguém poderia dizer que esse é meu território. Mas ele é muito maior que isso. A água que me serve e me sacia vem de um reservatório, percorre quilômetros de canos até chegar nas torneiras de casa. O espaço dessa água é também meu território. Os lugares onde desempenho atividades de lazer ou de trabalho são meu território. Se eu tivesse uma religião, o lugar onde eu me conectasse com o sagrado seria parte do meu território. E os lugares de onde vêm as comidas que me alimentam são um pedaço de terra que me garante sobrevivência. Isso tudo mesmo que eu nunca possua esses espaços.

    Nas minhas férias, fui para o Vale do Ribeira, uma região do estado de São Paulo normalmente referida como a “mais pobre” dele. É a região que tem a maior parte de Mata Atlântica preservada no estado e a maior quantidade de quilombos. E por isso pensei muito sobre o que é um território. É só a casa da gente ou é um espaço grande, como o da roça, o da floresta, da nascente do rio, da colheita de sementes? Território como espaço de moradia, somente, não faz sentido e foi nos poucos dias visitando quilombos que isso ficou mais evidente.

    mulher segurando muda de palmeira na mata atlântica

    Estive no Quilombo Nhunguara, mais especificamente no Viveiro Sítio Pedra. A comunidade quilombola se estende pelos municípios de Eldorado e de Iporanga, ao sul do estado de São Paulo. A origem dos bairros que o forma remonta à época do Brasil colonial, com os ciclos de mineração e, mais tarde, no ciclo de plantio de arroz.

    A região, portanto, foi construída (assim como o país todinho) a partir da mão de obra de homens e mulheres escravizados, geralmente pessoas negras. “Comunidades remanescentes de quilombos” é o nome que hoje recebem os espaços que abrigaram as pessoas que fugiram ou foram libertadas na época da escravidão. E eles são juridicamente reconhecidos pela Constituição Federal de 1988, dentro do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

    semente de feijão pra muvuca

    A luta por terra no Brasil é urgente, necessária e, como sabemos, já dura séculos. Apesar de ainda não ter sido titulado, o Nunhguara foi reconhecido em 2001 como comunidade remanescente de quilombo. Naquela época, mais de 90 famílias habitavam o território. A maioria das pessoas lá são agricultores, que tiram seu sustento das roças. No Viveiro, eles cultivam árvores nativas da Mata Atlântica e vendem para pessoas interessadas em reflorestar seus lotes (seja por vontade própria, seja por compensação a infrações ambientais). Ali, também há uma casa de sementes que me deixou fascinada e que é resultado do trabalho de pessoas de outras 4 comunidades quilombolas da região. Essas sementes são usadas para compor a muvuca, e garantem a recuperação de solos devastados.

    Muita gente acaba tendo a impressão de que comunidades remanescentes de quilombos são territórios afastados e praticamente apartados. A ideia que quilombos eram espaços de resistência ao sistema escravista pode dar a errônea ideia de que não havia contatos entre esses lugares e as cidades, as fazendas, e até aldeias indígenas. Mas as plantas, as verduras, os legumes, as frutas que saem do quilombo chegam a outras paragens (chegam inclusive à maior cidade da América do Sul). E isso acontecia até mesmo na época da escravidão.

    sementes brotando no viveiro

    O território de um quilombo não é só a terra onde se planta ou a casa em que se vive. O território, estipulado na própria Constituição, deve ser amplo o bastante para garantir a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade. Se uma divindade importante para a comunidade se manifesta nas árvores ou nas águas, elas são partes fundamentais ao território.

    No fundo, foi a concepção de território aplicado aos remanescentes de quilombos que me faz entender o que é meu território na minha cidade. E, certamente, não são só os 30m² que chamo de casa.

  • deste lado da ponte, último

    Vista do lago do parque Chácara do Jockey

    Demorou para eu entender que era apenas uma fase. Parecia um erro, uma consequência infeliz de problemas que não se resolviam, apenas se repetiam. Eu fui morar longe, num lugar inesperado. Não conhecia ninguém na vizinhança, e, por mais habituada à solidão que eu seja, parece que tudo ali foi exagerado. Durou mais tempo do que eu imaginava, e eu passei a ter menos disposição de cruzar a cidade para viver os espaços de antes, encontrar as pessoas que me amparavam. Habitei silêncios prolongados.

    Chegou um momento em que eu não falava mais disso com quase ninguém. Eu mesma tinha cansado de verbalizar o que eu achava ruim. Até parei de dizer que sentia saudades, talvez como forma de deixar de sentir. As palavras criam mundos, mas não estou certa de que a supressão delas dê conta de resolver as questões desses mundos. De qualquer modo, fui me calando cada vez mais e às vezes tenho medo de carregar desse período uma dificuldade em contar histórias.

    Para que eu soubesse que era apenas uma fase era necessário que ela terminasse. Mas ela só passaria no seu próprio tempo. Eu não tinha controle sobre ele. Sobre quase nada eu tinha controle. Fui triste. Mas ainda assim desejei não ser. Desejei conhecer o que era novo, criar imagens das quais eu pudesse gostar um dia. Desejei ver a felicidade dos outros, uma felicidade cotidiana, de um dia qualquer de sol em um parque. E, quem sabe?, assim pudesse eu mesma parecer feliz a um observador ocasional. Esse era o único controle que eu podia ter; sobre o meu tempo, sobre as imagens que eu levaria dessa época, do percurso das minhas pernas e da minha bicicleta aos finais de semana.

    Acima, um passeio no Parque Chácara do Jockey. Abaixo, registros do Instituto Butantan e do Parque Alfredo Volpi.

    parte 1 | parte 2 | parte 3

    Câmera: Canon EOS Rebel GII
    Filme: Solaris 100
    Revelação@kodakmafia

  • deste lado da ponte, 3

    Solidão sempre foi uma palavra comum no meu vocabulário particular. Não me assusta. Eu me lembro de sair de casa para resolver coisas de bicicleta pelo bairro já aos onze anos de idade e, às vezes, para não resolver absolutamente nada. Só ficar rodeando a praça da igreja até cansar ou começar a escurecer. Eu gosto de caminhar por cidades, sentar em um banco, observar o movimento das coisas. Perceber que a vida persiste, triunfa. Apesar de pesares.

    Andar só pela cidade é também uma forma de descobrir o quanto as coisas mudam de um quarteirão para o outro. Os prédios cheios de famílias vão sendo substituídos por loteamentos de casas gigantescas. As ruas movimentadas que vão se tornando vazias; arborizadas e apavorantes. Entre a Raposo Tavares e o Morumbi muitas diferenças são criadas, reforçadas, incentivadas. Até as linhas de ônibus rareiam. E os cachorros são menos livres; têm apenas um dono.

    Aqui, os registros dos meus passeios na Fundação Oscar e Maria Luísa Americano, na Praça Vinícius de Moraes e nas imediações da Vila Sônia e do Peri Peri.

    parte 1 | parte 2

    Câmera: Canon EOS Rebel GII
    Filme: Solaris 100
    Revelação@kodakmafia

  • deste lado da ponte, 2

    Um parque que eu não sabia que existia e um caminho que me é muito familiar. Sair. Ver o mundo. Buscar o desconhecido e relembrar o conhecido. Somar a isso o uso de uma câmera que eu nunca tinha usado antes. Presente de uma amiga que morreu. Esqueci de comprar bateria, descobri já na rua que teria que fotometrar na unha. Achei que o ISO do filme dentro dela era 400, mas na realidade era 100. O erro. A luz aparece de um jeito diferente, por frestas, em pontos de fuga. Talvez tudo que me dói hoje sejam coisas que não deixei que doesse em outros momentos da vida. E só me sobraram imagens e um punhado de metáforas mal acabadas.

    parte 1

    Acima, fotos do Parque da Previdência e suas imediações. Abaixo, a Cidade Universitária num dia com florada (surpresa pra mim) de cerejeiras.

    Câmera: Praktica MTL3
    Filme: Solaris 100 (vencido em 2008)
    Revelação@kodakmafia

  • deste lado da ponte, 1

    Eu não vim morar na Zona Oeste por querer. Foi mais por precisar. E, naquela época, minha maior urgência era parar de me sentir desgraçadamente triste. Eu precisava me mudar para tentar não me sentir insuficiente como vinha me sentindo já havia meses. E a Zona Oeste me recebeu nesse projeto. Os problemas não se resolveram, embora os motivos tenham mudado. Segui triste. Descobri novas formas de me sentir insuficiente. Mas a mudança era temporária – ainda que mais longa do que eu gostaria – e tinha cara de redução de danos e não de solução definitiva.

    Agora, tá chegando a hora de eu ir embora de vez. E, por mais difícil que tenha sido o percurso, decidi registrar as paisagens que foram construídas nesse período. Alguns lugares que eu já conhecia mas se ressignificaram, outros que escolhi visitar abrindo um mapa no celular. Em tardes pacatas de finais de semana de tédio, éramos eu, a câmera e minha bicicleta.

    Pensando nessa série de fotografias, eu sinto que me tornei uma turista. E meus pontos de interesse eram simplesmente o que havia deste lado da ponte. Eu frequento o Estádio do Morumbi desde os 16 anos de idade, mas eu não sabia bem onde ele estava, qual seu entorno, o ermo dos dias sem jogo. Nesse dia das fotos, eu estava em casa, nervosa com a semifinal do Campeonato Paulista de 2022.

    Para diminuir o nervosismo, peguei a bicicleta e fui ver a movimentação da torcida. Cheguei na mesma hora que o ônibus com os jogadores, assisti às massas de torcedores buscando seus portões. Comi um lanche de pernil em uma das vans estacionadas na avenida e voltei para casa a tempo de ver o apito inicial do jogo. Por fim, ganhamos.

    Câmera: Praktica MTL3 | Filme: Solaris 100 (vencido em 2008) | Revelação: @kodakmafia

  • amadoras

    Na viagem ao Espírito Santo, no ano passado, passei umas horas na praia, olhando o mar no fim da tarde. De repente, um grupo de homens tirou seus uniformes e entrou na água correndo. Eram homens adultos, que tinham terminado o trabalho do dia. Pegavam jacaré, que é como a gente diz quando a pessoa vê a onda vindo e a “surfa” com o próprio corpo, sendo carregado até mais pra areia. Se divertiam como eu queria que todos os trabalhadores pudessem se divertir depois do expediente. E todas as trabalhadoras também.

    Eles usavam uniformes de uma empresa de telefonia, mas nenhum dos colegas era mulher. Os corpos nas praias tem dinâmicas muito diferentes. Não é difícil perceber. Principalmente se na puberdade seus pêlos nas virilhas se tornam indesejáveis, grotescos. E se a forma do seu corpo está sob escrutínio constante, julgamentos frequentes (às vezes somente seus, mas, ainda assim, imparáveis).

    Naquela tarde em Vila Velha, pensei que havia então uma nova interpretação para a música de Cindy Lauper. Garotas só querem se divertir. Antes, a letra me dizia que isso era a única coisa que garotas queriam fazer, que elas não queriam encarar a vida com seriedade, não queriam ser sisudas e bem educadas para o lar. Mas, ali, parecia que havia algo mais naquela letra. Garotas só querem se divertir com a facilidade com que os garotos se divertem. Enganar a maré, ser carregada por uma força da natureza, sentir o vento, rir de qualquer bobagem.

    Eu sempre gostei muito de esportes, de jogos e atividades em geral (a própria viagem ao Espírito Santo em 2021 foi com a meta de aprender a surfar e, desde então, sonho constantemente que estou de volta ao mar com uma prancha). Entre 2018 e 2020, eu estava em quadras de basquete pelo menos uma vez na semana. Mas foi o futebol a minha primeira – e praticamente única – atividade social na pandemia. Coube aos treinos semanais o encontro com pessoas, a necessidade de aprender novos nomes, conhecer novos rostos. Era o futebol que me fazia sair de casa em praticamente qualquer condição meteorológica e que testava meus pulmões em corridas curtas com máscara.

    Tem todo um discurso sobre o reconhecimento da mulher como profissional no mundo do trabalho. Um mundo – sobretudo o do escritório – também hostil à natureza de nossos corpos. E esse discurso enfatiza a necessidade de se reconhecer nas mulheres seriedade e capacidades laborais que não sejam biologicamente definidas. Mas eu queria também o reconhecimento do amadorismo feminino. O amadorismo de uma partida de futebol em dia de semana, de fotografias mal tiradas em câmeras baratas. O amadorismo de uma atividade que não gera lucro, mas apenas distração, sensações, diversão. Como pegar jacaré no fim de uma quinta-feira.

    Câmera: Olympus Stylus Epic
    Filme: Fujifilm Superia 100 (vencido em 2005)
    Revelação: Kodak Mafia

  • entre lembranças e descobertas

    Eu tô tentando lembrar quem eu sou.

    Desconfio que nunca tenha me preocupado em saber, de verdade. Poucas vezes pensei em quem eu era, muitas vezes em como eu estava. É fascinante que no português exista essa distinção entre ser e estar e exista uma forma de eu contar isso, sobre essa maneira que eu mesma existia. Tenho tentado escutar minhas vontades e não odiá-las por medo ou vergonha. Lembrar quem eu sou é, no fundo, entender meus valores. Mas esses valores não habitam dentro de mim desconectados de um contexto. Minha liberdade ou minha autonomia dependem das condições em que elas possam se manifestar. Minha vontade de estar próxima de quem eu amo, de compartilhar comida, afeto, uma carona com um desconhecido na estrada depende de contexto. Eu sinto que estou me conquistando de volta, que consigo lembrar como era o passado, como era entrar num ônibus com desconhecidos, e uma hora e pouco depois estar em outra cidade, em outra vista. Como era o lugar onde o rio encontra o mar. Como era quando a maré subia num susto, me forçando a escolher o que salvar da onda que avança. Tem tanta coisa morando dentro de mim, sempre teve, mas agora elas vão ganhando nomes, espaços, momentos para emergir. Eu tô lembrando quem eu sou e por que gosto de me ser.

    Eu tô tentando descobrir quem eu sou.

    Teve um dia, um ano atrás, mais ou menos, em que eu quebrei. Fiz meu exercício físico dentro do quarto, comecei a chorar e não sabia mais parar. Não existe outro verbo pra essa situação, eu simplesmente quebrei. Eu queria explicar o que aconteceu naquele dia, mas é algo muito meu, e vou deixar assim. Mas a partir dali eu precisei juntar peças de mim mesma. E pra montar essas peças, eu precisava conhecê-las, saber com o que se pareciam. Eu tive que cutucar cicatrizes e olhar por dentro delas pra ver se algo ali havia infeccionado, se era ali que doía o que mais doía e, se não era, onde podia ser. Eu descobri que tenho muita raiva, mas que reclamo pouco. Que ter passado anos sem chorar na adolescência foi uma estratégia de sobrevivência. E se eu sobrevivi a tanto, eu já posso assumir que sou também fraca na mesma medida em que me fiz forte todo esse tempo. Eu descobri que tenho muitas dúvidas sobre mim, mas também tenho certezas profundas. Neste momento, por exemplo, estou certa de que não quero mais desconfiar de quem eu sou.

    outubro/2021

  • reaprender a leveza

    Gostar das pessoas, do cachorro chato, de um café meio aguado. Estranhar estar bem. Poder ficar feliz, calma, correr pra pegar o cachorro chato. Não ter nada na cabeça nem nada acima dela. Apenas o céu nublado da frente fria de agosto. Dançar com Stephanie depois do jantar. Sorrir a cada refeição feita por Marina. Curiar sobre os feitos do Guilherme. Tirar umas fotos sem compromisso, escrever umas páginas pra esvaziar o cérebro. E depois ainda ter do que lembrar, sentir saudade do cachorro chato dengoso com a barriga pra cima se acalmando com carinho na pança.

    agosto/2021

  • o que me contam as ruas

    Botei um filme na câmera e praticamente esqueci dele lá. As primeiras imagens fiz em 2016 e depois com um salto fui para 2018, 2019 e começo de 2020. Mandei relevar só em 2021 e lembrei-me do que me contavam as ruas naqueles dias.

    avenida paulista, são paulo, 2018
    são paulo, 2018
    churrasquinho, 2018
    avenida paulista, 2019
    paulo freire na avenida paulista, 2019
    manifestação em defesa da educação, 2019
    centro de são paulo, 2020
    praça da sé, 2020
    praça da sé, 2019
    tirem os tiranos do poder, 2020

    câmera: beirette vsn

    filme: kodak colorplus 200

    revelaçãolab:lab