cena do filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

lavar roupas e declarar impostos

We live entirely, especially if we are writers, by the imposition of a narrative line upon disparate images, by “ideas” with which we have learned to freeze the shifting phantasmagoria which is our actual experience.

Chegou um comunicado pelo sistema do trabalho. Eu abri, sabendo que se tratava de algo importante para minha função. Percebi, porém, que não sabia mais ler. Mas era um tipo diferente de não saber, que não tinha a ver com não ter aprendido. Eu reconhecia as letras, e, com elas, formava palavras. Em seguida, formavam-se frases. Mas eu era incapaz de apreender o sentido do que estava escrito. Passei o olho 3 vezes pelo documento, abaixei minha cabeça e desisti. Decidi esperar para conversar com outra pessoa que tivesse recebido o mesmo material para descobrir o que exatamente ele dizia.

Isso foi no começo de 2021. Meu pai tinha sido internado com covid, pouco antes de a vacina estar disponível para sua faixa etária. Ele saiu do hospital poucos dias depois, mas a sensação de incapacidade que eu tive naquela época ainda persiste. Não na mesma intensidade. Mas meu cérebro se tornou uma peça meio exótica do meu corpo, com comportamentos que parecem desafiar as leis da matéria. Primeiro, eu o sentia como uma massa pastosa que escorria da minha cabeça, deixando-me só com parcela da minha capacidade mental. Depois, passei a sentir que ele se expandia a ponto de ficar exprimido dentro do meu crânio.

“Lead a simple life,” the neurologist advised. “Not that it makes any difference we know about.” In other words it was another story without a narrative.

Foi há poucos dias que eu descobri que meu cérebro mesmo não tem problema nenhum. Ele nem mudou de estado físico, de sólido para líquido, nem começou a se expandir me fazendo ter a sensação de um capacete espremendo minha cabeça. Pensei que pudesse ter algum problema na visão, mas um teste de acuidade visual provou que sigo enxergando de maneira satisfatória. O que eu venho sentindo desde aquela época é ansiedade e, mesmo que eu sempre tenha me reconhecido como alguém ansiosa, nunca havia sido dessa maneira.

The startling fact was this: my body was offering a precise physiological equivalent to what had been going on in my mind.

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo é o novo filme que tem no multiverso sua espinha dorsal. Ao contrário das demais variações recentes sobre o tema em que as histórias são protagonizadas por super-heróis que passeiam por canais quânticos para encontrar versões diferentes de si mesmos e realizar alguma tarefa hercúlea, a obra dos Daniels tem uma protagonista com uma história prosaica. A princípio, uma imigrante chinesa na América precisa organizar notas fiscais para ficar em ordem com a Receita Federal.

Evelyn é a proprietária de uma lavanderia de bairro que tem que lidar com várias questões ao mesmo tempo. A funcionária pública de má-vontade, a festa de ano-novo chinês da comunidade, a filha que quer apresentar a namorada, o marido que chega com um pedido de divórcio, o pai doente sob sua responsabilidade. O filme coloca a protagonista com percalços que muitas pessoas atravessam no mundo inteiro: as expectativas e decepções da vida e a necessidade de se quebrar ciclos dentro das próprias famílias.

Por mais que esses temas apareçam constantemente no meu caminho (em pelo menos uma sessão de terapia no mês, lhes garanto), o filme me pegou em outra parte. Talvez eu não estivesse assistindo meus traumas familiares e minha síndrome de boa aluna numa tela gigante. Talvez eu estivesse vendo meu próprio cérebro, o funcionamento da minha mente nos últimos meses. Eu realmente passei a ter o poder – inútil, para não dizer incômodo – de estar em muitos lugares ao mesmo tempo.

In what would probably be the middle of my life I wanted still to believe in the narrative and in the narrative’s intelligibility, but to know that one could change the sense with every cut was to begin to perceive the experience as rather more electrical than ethical.

Em fevereiro, quando recebi uma notícia muito boa, depois de dois anos de notícias que variavam entre ruins a terríveis, eu comecei a criar cenários mentais em que tudo dava errado. E, por mais que eu soubesse que se tratavam de ações probabilisticamente improváveis, passei muito do meu tempo espiralando em uma versão inexistente de mim mesma. Parecia que, por ter me desacostumado completamente de ter qualquer controle sobre a minha vida, eu simplesmente buscasse me antecipar a tudo de ruim que pudesse vir a acontecer algum dia comigo (e eu, a bem da verdade, não fui a única a me sentir assim).

Quando um dos maridos de Evelyn de um dos universos alternativos diz “Você é capaz de qualquer coisa porque você é ruim em tudo”, eu finalmente me senti vista (por ninguém, já que eu estava vendo o filme e não contrário). Me sentindo há tanto tempo a pior versão de mim mesma, a mais incapaz de terminar o que começa ou começar algo para terminar, vivendo um momento muito estranho da minha vida e também da história do mundo… Respirei fundo. De todos os universos que existem, eu só queria me prender àquele em que sou a soma de minhas frustrações e, assim, sou capaz de qualquer coisa.

I tell you this not as aimless revelation but because I want you to know, as you read me, precisely who I am and where I am and what is on my mind. I want you to understand exactly what you are getting: you are getting a woman who for some time now has felt radically separated from most of the ideas that seem to interest people.

Entre cansaços extremos e desejos pulsantes, por fora, parecendo deprimida, e por dentro, um poço de ansiedade, eu só tenho almejado o momento em que estarei novamente apenas vivendo o presente. Achando até uma sorte ser a versão mais de medíocre de mim mesma. E, de preferência, a única versão, do único tempo em que posso habitar: este aqui.


As citações ao longo do texto são do livro The White Album, de Joan Didion, que terminei de ler essa semana, e que dá conta desse viver uma época de dissolução do real e fragmentação do ser.


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