os terraços da memória

família

“Memória é vida. Seus portadores são grupos de pessoas vivas e, por isso, a memória está em permanente evolução. Ela está sujeita à dialética da lembrança e do esquecimento, inadvertida de suas deformações sucessivas e aberta a qualquer tipo de uso e manipulação. Às vezes fica latente por longos períodos, depois desperta subitamente. A história é sempre incompleta e problemática reconstrução do que já não existe. A memória sempre pertence a nossa época e está intimamente ligada ao eterno presente; a história é uma representação do passado”

Pierre Nora. Les Lieux de la Memoir

Alberto já é um senhor e seu filho é poucos anos mais velho do que eu. Tivemos a oportunidade de passar cerca de 10 dias convivendo com ele, conversando sobre as histórias de Brasil e Argentina. Descobrimos depois que ele apenas cobria as merecidas férias da esposa na recepção do albergue em que nos hospedamos e por isso não conseguimos nos despedir dele no último dia em Buenos Aires. Sempre solícito, às vezes com seu chimarrão na bancada, começava a falar e teve longas conversas especialmente com o Caio. Eu mesma tinha a dificuldade do idioma e costumava chegar bem cansada das minhas voltas pela cidade, o que não me impediu de trocar algumas palavras sobre museus e de acompanhar algumas coisas de que falavam os dois.

Como o ensino de história da América hispânica nas escolas é mínimo no conteúdo programático das escolas brasileiras – para não generalizar e dizer nulo -, é meio do nosso senso comum imaginar que a história do Brasil é desconhecida dos outros países. Alberto nos mostrou o contrário. Não chegou nem perto de dizer que as pessoas no Brasil andam nuas e numa natureza exuberante, com várias espécies de macacos (visão que Os Simpsons podem ter do país). Contou-nos, com humildade, que o que conhecia era a particularidade do Brasil em seu processo de independência, quando a família real chega no Rio de Janeiro e lá se estabelece. Adentramos o século XIX, com a posição periférica da Argentina no Império espanhol, com Bolívar e San Martín. E fomos indo. A proclamação da independência aqui, a monarquia dos Pedros no meio de tantas outras repúblicas. As abolições da escravatura. Lá, em 1853, mas com ventre livre e fim do tráfico já em 1813. Aqui, em 1888. A Guerra do Paraguai que só a gente chama assim, porque os outros chamam de Guerra da Tríplice Aliança.

O longo século XIX, então, estava resolvido. O XX não. Comentamos com pesar e brevidade os episódios das ditaduras militares, que, apesar das particularidades, unem Chile, Brasil, Uruguai, Argentina. Em uma frase, a síntese de que são feridas que ainda estão abertas.

Algumas noites depois, eu e o Caio comíamos baguete com tiramissú no terraço do albergue. Um dos chilenos sentou conosco e começamos a conversar sobre toda a sorte de assuntos. Em determinado momento, o rapaz fez uma colocação sobre o caráter socialmente pedagógico da ditadura de Pinochet, alegando que hoje as coisas no Chile estão em paz – e na Colômbia e na Venezuela não – porque a polícia soube ensinar os pobres que eles tinham que trabalhar e não viver de dinheiro fácil do governo. Disse-nos ainda que a polícia lá é incorruptível e que isso veio muito das punições na época da ditadura. Nós não conseguíamos argumentar, porque a vivência dele era essa. Não conseguimos evitar, porém, a cara feia, o que o fez acrescentar de imediato que era a pessoa mais contra agressão a outras no mundo, mas que a economia chilena ficou uma maravilha graças à ditadura. A nossa posição política podia dizer “Não, um crescimento econômico – parcamente aferido – não justifica uma ditadura”, mas caminhávamos sobre as feridas não cicatrizadas, essa parte do breve século XX ainda está muito viva nas paixões. Conseguíamos falar do caso da ditadura no Brasil, deixando claro que estamos longe de considerar esse período como implementador da incorruptibilidade das nossas instituições e que a maravilha econômica dos anos 70 era um falso fausto, pagamos as parcelas dessa longa fatura (na Argentina isso ainda é mais visível).

Desde que passamos por isso, tive vontade de escrever, mas não sabia como. Comecei a ler A era dos Impérios (1875-1914) do Eric Hobsbawm semana passada e o primeiro capítulo do livro traz uma discussão bastante pertinente sobre a memória. Porque a gente consegue falar dos extermínio dos índios na Argentina, do seqüestro de Montezuma, das mortes em Canudos de modo pragmático. Mas não conseguimos comentar as últimas eleições, o período militar, o papel do nazismo sem estarmos bastante envolvidos num debate forte, complexo e extremamente dinâmico.

“Não quero dizer que o passado mais remoto não tenha significado para nós, mas que suas relações são diferentes. Ao lidarmos com períodos remotos, sabemos que os encaramos essencialmente como estranhos e distantes, mais como antropólogos ocidentais empreendendo uma pesquisa sobre os povos montanheses de Papua”

Eric J. Hobsbawm. A Era dos Impérios (1875-1914).

[Essa coisa de dizer longo século XIX e breve século XX, eu peguei do Hobsbawm também]

PS: Aos que lêem os textos pelo Reader, tô avisando que mudei o layout do blog, hehe.


Comments

  1. Memórias sempre servem como pano de fundo para conversas, \”discussões\” e trocas de experiências, e obviamente, vem carregada de impressões pessoais. Não tem como não ser assim. Acho que ambos os debates – memórias ou fatos, que apenas temos conhecimento remoto – são interessantes, mas a ótica tratada em cada um desses passa longe de ser igual.

  2. não se conter e torcer o nariz tentando tampar a boca e as rugas na testa: esse sou eu ouvindo absurdos sobre Pinochet e seus colegas

  3. há dias que li esse post, que você mesma me recomendou, dada a minha experiência semelhante sobre a ditadura chilena, mas ainda me faltam palavras para comentar.de qualquer forma, o final do seu post acho que me \”acalma\”. e ainda faltam palavras até para me definir.

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