nunca deixamos de ser românticos

Era com goles de chá e petiscando biscoitos que discutíamos como o Romantismo nunca acabou. Já era quase madrugada, mas ali estávamos, falando sobre como a nossa estrutura de pensamento é insuportavelmente romântica e que isso nada tem a ver com amor. Naquela época, para ser bem sincera, amor era a última coisa que nos importava.
Ontem terminei de ler Jamais fomos modernos, de Bruno Latour, e rabisquei com sono em sua página final: “Jamais fomos modernos, nunca deixamos de ser românticos”. Esse é um texto de análise política disfarçada de resenha de livro e vice-versa com apontamentos levemente pessoais. Em ocasiões diferentes em salas de aula os pensamentos de Latour apareceram e eu só pude perceber isso agora. Li sozinha essa obra e desconfio que entendi no fim das contas muito menos do que gostaria. Ainda assim, caí em um tipo de maravilhamento causado pela falsa ideia de que por coincidência cheguei a esse livro na época das eleições. A primeira publicação, em francês, dessa obra é de 1991. Nota-se, sobretudo no final, que a queda do muro de Berlim era uma pauta ainda. Enquanto as propagandas políticas na minha televisão digladiavam-se entre um “muda mais” e um “o Brasil quer mudar”, eu transcrevia o seguinte trecho:

“Se existe algo que somos incapazes de fazer, podemos vê-lo agora, é uma revolução, seja na ciência, na técnica, em política ou filosofia. Mas ainda somos modernos quando interpretamos este fato como uma decepção, como se o arcaísmo tivesse invadido tudo, como se não existisse mais um depósito de lixo onde fosse possível empilhar o que foi recalcado.”

As revoluções, ao longo do tempo, foram se tornando tão autoconscientes e tão desesperadas em romper com o passado que por vezes deixaram de se dar conta de que o passado continuava presente. A crença dos modernos em si mesmos parece ter tampado parte de suas visões para todo o resto.
Se jamais fomos modernos, como diz Latour, porque jamais os ocidentais deixaram de se diferenciar como julgaram dos outros povos, o Romantismo como matriz de pensamento emerge em qualquer conversa banal. A supremacia do indivíduo, a pessoa contra o mundo, contra a sociedade que o rodeia. Os românticos são só uma parcela da história da pretensa modernidade, mas provavelmente sua face mais visível no cotidiano. O amor a uma pátria ficcional, a admiração que nutrem por uma natureza transcendente que está dissociada do mundo dos humanos. Dizer-se “brasileiro com muito orgulho, com muito amor”, colocar-se em uma disputa democrática como antagonista absoluto de alguém, imaginar que é melhor arriscar a vida de algumas comunidades indígenas (que são tratadas como “artefatos” de identidade nacional de um passado distante e não como agentes políticos em debate no nosso próprio tempo) em prol da modernização a qualquer preço ornam bem com o ser moderno. Que não somos.
No primeiro turno dessa eleição presidencial, me causava um certo incômodo que uma candidatada falasse de nova política e um candidato respondia sobre como vai mal a economia, e em tréplica era preciso mencionar programas sociais e outra procurava espaço para condenar a exploração e um último defendia o meio ambiente (tinha dois que eu sequer me arriscaria lembrar do que diziam sem sentir uma espécie de enojamento). A questão é que é nada disso existe em si e supor prioridades é ainda ter um pensamento que não conecta pontos. E pra quem pense que estou brincando de pós-modernista num barulho desses e que não me importa quem seja eleito, digo que a mim importa muito.

“Se explico que as revoluções tentam abolir o passado mas não podem fazê-lo, pareço ser um reacionário. Isto porque, para os modernos – assim como para seus inimigos antimodernos, assim como para seus falsos inimigos pós-modernos – a flecha do tempo não possui qualquer ambiguidade: podemos ir sempre em frente, mas então é preciso romper com o passado; podemos decidir voltar atrás, mas então precisamos romper com as vanguardas modernizadoras, as quais rompiam radicalmente com seu passado.”

Dados do livro

Título: Jamais fomos modernos
Autor: Bruno Latour
Editora 34


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