elena ferrante e meu autoconhecimento

A amiga genial, de Elena Ferrante, foi um livro que me proporcionou muito autoconhecimento. A primeira coisa que aprendi é que não consigo desistir de um livro no meio e que ler rápido e querer saber como se desenrolam os fatos dentro dele, não é garantia de que estou amando a leitura A segunda coisa que aprendi nesse percurso é que eu sou muito chata. Isso fica aqui como autocrítica mas principalmente como informe e advertência.

A capa de A amiga genial é muito bonita, com três mulheres de maiôs em cores primárias, modelitos meio anos 1950. Todo mundo tem uma amiga – genial ou não – que postou essa capa no instagram (eu mesma sou essa amiga para muita gente). A polêmica que emergiu ano passado sobre a identidade descoberta da autora, que usa um pseudônimo, foi o início do surgimento massivo de notícias sobre Elena nas minhas timelines. Como não conheço outros escritores que frequentam as altas rodas do mercado editorial com nomes falsos, a controvérsia do pseudônimo parece mais ter ajudado do que atrapalhado a recepção das obras. Não vou entrar nessa discussão sobre privacidade e publicidade. Próximo tópico.

Outra coisa que descobri sobre mim lendo A amiga genial foi que eu não gosto de histórias que tem muitas pontas e, principalmente, que essa pontas não se amarrem dando uma coerência à história. Há, no livro, uma sucessão de eventos, e quando dá aquela sensação de que algo vai ser mais bem detalhado – tipo aquele dedo na ferida da relação entre fascismo e máfia – outro fato mais banal desvia desse foco de interesse. Eu nunca conseguia entender direito onde estava a preocupação da narradora e isso me incomodava bastante. Por isso, até consigo imaginar que o livro funcione melhor como uma adaptação para televisão.

A narradora, pra ser bem sincera, é o motivo para eu achar o livro meio esquisito. Elena – a narradora – decide se vingar da amiga de infância sumida fazendo algo que a amiga de infância pediu para ela não fazer: contar sua história. Até aí, tudo bem. Reza a lenda que Kafka pediu pro amigo tacar fogo nos seus escritos mas o cara decidiu publicar até a última carta encontrada. Minha questão não é moral (até porque de não-moralidades vive o melhor da literatura!), mas é de como a narradora tem acesso minuscioso a momentos em que ela não estava presente. Ou é o próprio deus onisciente escrevendo, ou o texto falha muito ao contar uma história cujos restos são fragmentos de diários e cadernos. De fato, isso é dito no começo do livro, a amiga – Lila – delegou esses diários mas o detalhamento de eventos em que Elena não estava presente me causa um tremendo desconforto como leitora.

Descobri sobre mim que eu funciono muito por analogias, e sentia falta da honestidade de falsos historiadores como o narrador de As virgens suicidas que coleta vestígios da existência das irmãs Lisbon e constrói uma história – às vezes contraditória – sobre suas personagens. Muita gente também elogia Ferrante pela construção de personagens femininos que estabelecem relações de cooperação e competição – seja com amigas, seja com as mães. Nesse assunto, minha tara por analogias me obriga a destacar como livros que cumprem melhor essas funções: O amante, de Marguerite Duras e Segredos de menina, de Maitena Bundarena. O grande mérito de Ferrante, porém, é trazer o cenário napolitano e os embates entre duas línguas – o italiano e o dialeto – no cotidiano da cidade. Só por isso o incômodo com frases muito longas separadas por vírgulas e construções verbais estranhas pode ser minimizado. Não parece ser problema de tradução (disseram que o tradutor do italiano para o português é muito bom), mas talvez um recurso estilístico dessa tensão entre dois mundos linguísticos que Elena frequenta. Essa é a dose de compreensão que me cabe dar à obra.

Para além das questões formais, tem uma coisa que não entendo em A amiga genial, mas essa é realmente pela dificuldade de me colocar no papel da protagonista. A dificuldade aparece não por termos experiências opostas, mas sim por eu conseguir minimamente me enxergar na personagem. E então quando vejo os horizontes de Elena se abrindo para fora do bairro, vai me parecendo menos plausível o aumento do envolvimento dela com as demandas do lugar. Quando ela passa mais tempo fora estudando, convivendo com pessoas de outras localidades, como consegue voltar para a amiga de infância como se tivesse ido só cumprir uma aposta do outro lado da cidade? Meus amigos da rua, com quem eu brincava todos os dias na infância, se tornaram adultos por quem eu passo hoje em dia e mando um “opa!” e recebo tão somente um “e aí, beleza?”. Quase admiro a capacidade das duas amigas de não se tornarem completas estranhas uma para a outra, deixando só umas rusgas para desenrolar mais dois ou três volumes.

Se for real que logo menos essa história vai parar na televisão, tenho uma saída para descobrir o que ficou pendente. Pelo menos no audiovisual uma contradição pode ser minimizada: a gente tende a estranhar pouco a câmera nos guiando como narrador onisciente.


Comments

2 respostas para “elena ferrante e meu autoconhecimento”

  1. Oi, Bárbara!Adorei a sua resenha! Nós temos ideias completamente opostas do livro, e achei interessante o seu ponto de vista.Eu escrevi de uma maneira bem apaixonada, por admirar a capacidade de autoconhecimento do ser humano e ver a Elena fazer isso tão bem em relação a ela mesma. Achei fantástico!Tanto por isso quanto pela identificação eu acabei me apaixonando pela história e as questões que você falou não me pareceram problemas. Concordei com umas e discordei de outras.Por exemplo, a questão do bairro, máfia e fascismo e as pontas soltas que esse assunto deixou. Eu entendi que o assunto cresce junto com a personagem. Por mais que eu queira saber sobre isso de uma forma mais didática, a Elena não tem isso como prioridade na vida dela, nem o intelecto pra entender como essas coisas acontecem, apesar de na época a Lila e o Pasquale falarem muito do assunto e se envolverem nisso. Minha mãe por exemplo, cresceu na época da ditadura e foi afetada por que estava inserida naquela realidade, mas a compreensão do que realmente acontecia só veio depois. Falar da realidade política de Nápoles seria fugir um pouco à personagem, que até agora (estou no segundo livro) mostrou a política na vida dela apenas como algo obrigatório para se dar bem na escola e ser bem vista pelas pessoas que fazem parte daquela realidade. Sobre o acesso que ela tem aos eventos eu acredito que uma parte é justificada pelos diários da Elena e a outra parte vai da nossa capacidade de abstração. Acho que se prender a isso é ficar no pequeno e não se deixar levar pela narrativa, que tem uma mensagem mais importante.Entendo o que você fala sobre a identificação. Eu também não consigo lembrar de uma amizade intensa como a que existe entre Lila e Elena. Mas quando eu pego a história delas e lembro de situações pelas quais eu já passei é como se eu formasse um mosaico da minha vida e consigo enxergar o que elas passaram. Momentos diferentes, pessoas diferentes, mas o evento e a lição que eu tirei disso continua lá. Enfim, achei muito legal a sua resenha! Foi um outro ponto de vista e me levou a ser mais específica em relação aos motivos pelos quais eu gostei do livro.Também fiz uma resenha lá no meu blog, se você quiser ver 🙂

  2. Diários da Lila*sorry, hahahah

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *