Sou uma leitora lenta, mas dedicada. Constante, sobretudo. Há anos minha meta de leitura é modesta: pelo menos um livro por mês. Às vezes tento ler em outros idiomas, o que diminui sempre a velocidade. Passo os dias lendo, na verdade. Artigos de jornal, revista, acadêmicos, mas que no final do ano não entram na contagem de livros. Eu gosto de pegar minha bicicleta, ir pra algum lugar aberto e ler um livro. O que significa parar o tempo todo a leitura para ficar observando cachorros, crianças e crianças interagindo com cachorros. Minha meta de leitura talvez seja modesta porque é fruto do meu reconhecimento das minhas próprias capacidades e habilidades. E, afinal, é um passatempo que não sinto nenhuma necessidade nenhuma de transformar em métricas.
Dois dos livros que li em 2021 viraram post por aqui. Primeiro, aproveitei que estava reassistindo as temporadas de Mad Men para associar as práticas dos personagens às discussões que o livro Drogas: a história do proibicionismo levanta: mad men e as drogas do consumo. E com algumas pessoas querendo saber como havia sido minha experiência com o livro O caminho do artista decidi também escrever sobre os 3 meses que levei nesse percurso: minha experiência com o caminho do artista.
Em 2021, assim como em 2020, li os livros que tinha disponível na estante, com a ordem sendo decidida por apenas minha vontade. Nessas, li dois livros que demorei muito para enfrentar. O primeiro deles, Lolita, do Nabokov. Ganhei-o de presente há anos de uma amiga que havia dito que achava que eu ia gostar muito dele. Por ter visto o filme do Stanley Kubrick quando tinha 18 anos e achado perturbadora a romantização da relação entre narrador e Dolores, desconfiei da recomendação.
Mas no fim de 2020 muitas listas de fim de ano de sites gringos recomendaram um podcast sobre o livro. Pensei então que eu devia lê-lo e depois aproveitar o podcast como um grupo de discussão (com a vantagem de eu não precisar falar nada nele). O Lolita Podcast foi meu favorito do ano e teve um episódio só para lidar com a versão cinematográfica de 1962, e 13 anos depois pude entender que meu desconforto não era à toa. O livro é extremamente violento, mesmo com o narrador o tempo todo reforçando seu papel de entusiasta da cultura e civilidade. Há uma genialidade do autor na forma como Humbert Humbert se coloca, tenta justificar atos injustificáveis, o tempo todo buscando produzir uma defesa perante um júri.
Muitas coisas passavam pela minha cabeça durante a leitura, mas o que mais me chamou a atenção foi o fato de que ele, no fundo, é um livro de estrada. Um gênero extremamente estadunidense na literatura e no cinema. Escrito por um autor nascido na Rússia (e, descobri no podcast, que sofreu abuso quando criança e que era veementemente contra as capas do livro que sexualizavam a personagem-título), essa apropriação de um gênero tão relacionado aos Estados Unidos, com os personagens principais vivendo a experiência de subúrbio branco de classe média, soa como um comentário irônico. Talvez Lolita não seja tão diferente da Sonietchka de Crime e Castigo, suas vidas contadas como uma tragédia conformada, vítimas do poder masculino sobre seus corpos. Meses depois, lendo Morte em Veneza, encontrei certos ecos nos temas e escolhas do narrador.
Outro livro que ficou anos na minha estante e só me aventurei agora em lê-lo foi As almas da gente negra, do Du Bois. Publicado pela primeira vez em 1903, me fez pensar na pobreza de formação que a gente tem de ler poucos autores negros nascidos no século XIX. O livro é uma coletânea de textos e a experiência da escravidão e da Guerra Civil está vividamente ali. Du Bois nasceu livre, em Massachusetts, bisneto de escravizado. Mas começa o livro contando a primeira vez que identificou o véu que o separava dos outros. Esse véu percorre vários dos textos como uma metáfora para o racismo que separava os negros da experiência coletiva nos Estados Unidos. Há ali debates da época (como o de escolas e universidades exclusivas para negros) e histórias de sua própria vida, suas incursões pelas áreas rurais, sua experiência como professor nesses lugares.
Cada capítulo tem em sua abertura um poema e notações musicais. O último texto do livro então fala justamente sobre esses cantos, que Du Bois chama de sorrow songs (canções de tristeza?). São cantos que expressavam o sofrimento de afro-americanos escravizados e se relacionam com a tradição cristã que essas comunidades desenvolveram. Elas evocam figuras bíblicas, clamam por misericórdia e recuperam histórias de indivíduos e povos escravizados em sua busca pela libertação. Pegando os trechos que ele transcreveu, montei uma playlist com as versões que encontrei executadas por artistas negros dos Estados Unidos.
Além de vagarosa e interessada nas abordagens transmídia da literatura, também sou exímia rabiscadora de livros. Deixo aqui um trecho de quase todos os livros que li no ano (ficaram de fora os quadrinhos e Lolita, que não rabisquei nada, congelada na experiência do livro).
Minha Vênus está danificada, ou exilada, é assim que se fala sobre o planeta que não se encontra no signo em que deveria estar. Além disso, Plutão, que em meu caso governa o ascendente, permanece num aspecto negativo em relação a ela. Essa situação faz com que eu tenha, ao que me parece, a síndrome da Vênus Preguiçosa. Foi assim que chamei essa característica. Trata-se, então, de uma pessoa dotada pelo destino, mas que não aproveitou nada de seu potencial. É inteligente e esperta, mas não se dedica com seriedade aos estudos. Em vez disso, usa a inteligência para jogar cartas e paciência. Possui um corpo bonito, mas o destrói por negligência, se intoxicando com substâncias estimulantes e ignorando médicos e dentistas.” Sobre os ossos dos mortos (Olga Tokarczuk)
O processo criativo nascido a partir dessas necessidades dá origem a criações tão encantadoramente peculiares e originais quanto seus criadores. Como toda arte, as criações são produto do seu período e uma tentativa de abordar as questões de sua era. Também como a arte, as criações parecem fora de moda e antiquadas quando vistas de um futuro que elas ajudaram a criar. No entanto, há um fascínio singular no ato de parar e olhar a criação das mãos de cientistas passados, que nos deixa impressionados com o cuidado tomado com os elementos periféricos, assim como ficamos deslumbrados com as centenas de pequenas pinceladas que magicamente se aglomeram em um pequeno barco no horizonte dentro de uma pintura pontilhista.” Lab Girl (Hope Jahren)
Moctezuma foi lamentado por alguns e desprezados por muitos. Ainda hoje não é celebrado no México. Então, a pergunta dos curadores é: ‘Os seres humanos são fazedores ou vítimas da história?’ Não há resposta única. Os vestígios ‘são tão parciais e fragmentários que não será nunca possível afirmar com certeza quais eram suas motivações’.” Viva, México(Alexandra Lucas Coelho)
Os três anos seguintes foram os piores que passamos. Cada dia, cada mês, era idêntico ao anterior, cada estação, uma reprise enjoativa e exasperante de alguma estação já vivida; era como se víssemos, com tristeza e desespero, a repetição das mesmas coisas, esperando em vão por alguma calamidade cujo nome desconhecíamos. O castelo branco (Orhan Pamuk)
Então me ocorreu, com uma certa urgência, que eu era diferente dos outros; ou talvez semelhante no coração, na vida e nos anseios, mas isolado do mundo deles por um imenso véu. (…) Por que Deus fez de mim um pária e um estranho na minha própria casa?” As almas da gente negra (W. E. B. Du Bois)
Os usos destrutivos, num sentido lotofágico anestésico, como escapismo e consolo letárgico, ou num sentido hiperexcitado obsessivo, como energético de vigília e desempenho, são polaridades excessivas de matizes mais abrangentes de possibilidades de usos de drogas.” Drogas: a história do proibicionismo (Henrique Carneiro)
As observações e as vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões, ocupam-no mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado, transformam-se em vivência, aventura, sentimento.” Morte em Veneza (Thomas Mann)
A língua emerge – biologicamente – de baixo, da necessidade irreprimível que tem o indivíduo humano de pensar e se comunicar. Mas ela também é gerada, e transmitida – culturalmente – de cima, uma viva e urgente incorporação da história, das visões de mundo, das imagens e paixões de um povo. A língua de sinais é para os surdos uma adaptação única a um outro modo sensorial; mas é também, e igualmente, uma corporificação da identidade pessoal e cultural dessas pessoas. Pois na língua de um povo, observa Herder, ‘reside toda a sua esfera de pensamento, sua tradição, história, religião e base da vida, todo o seu coração e sua alma’. Isso vale especialmente para a língua de sinais, porque ela é voz – não só biológica mas cultural, e impossível de silenciar – dos surdos.” Vendo vozes (Oliver Sacks)
As he sat in his bench gazing calmly at the rector’s shrewd harsh face his mind wound itself in and out curious questions proposed to it. If a man had stolen a pound in his youth and had used that pound to amass a huge fortune how much was he obliged to give back, the pound he stolen or the pound together with the compound interest accruing upon it or all his huge fortune? If a layman in giving baptism pour the word before saying the words is the child baptised? Is baptism with a mineral water valid? How comes it that while the first beatitude promises the kingdom of heaven to the poor of heart, the second beatitude promises also to the meek that they shall possess the land? Why was the sacrament of the eucharist instituted under the two species of bread and wine if Jesus Christ be present body and blood, soul and divinity, in the bread alone and in the wine alone? Does a tiny particle of the consecrated bread contain all the body and blood of Jesus Christ or a part only of the body and blood? If the wine change into vinegar and the host crumble into corruption after they have been consecrated, is Jesus Christ still present under their species as God and as man?” A Portrait of the Artist as a Young Man (James Joyce)
As pessoas costumam acreditar que a vida criativa é baseada em fantasia. A verdade mais difícil é que a criatividade é baseada na realidade, no particular, no foco, no bem observado ou especificamente imaginado.” O caminho do artista (Julia Cameron)