• despedidas

    minha despedida de São Paulo, fotografada por Jairo

    Existe essa crônica do Galeano em que ele conta a história de Julio Ama na guerra em El Salvador. Julio, que lutava e fotografava, com o fuzil e a câmera por perto, começou a buscar dois amigos, irmãos gêmeos, que costumavam estar sempre por perto. Encontrou-os próximos a um muro: um vivo e outro que jazia sobre os joelhos do irmão. Julio então se aproxima, arruma a câmera a partir da distância e da luz, certo de estar prestes a tomar a foto de sua vida. Julio decide não apertar o botão.

    Guardada toda a proporção, meus últimos dias na Argentina foram resumidos nesse texto. Saí de Santa Fe antes do previsto, por convite das minhas amigas, e foi a melhor escolha. Fomos para Buenos Aires e, nessa minha terceira vez ali, não tirei quase nenhuma foto. Incumbi minha memória de registrar fotograficamente aqueles últimos deleites culinários, aqueles últimos instantes da ampla felicidade que seguiram nesses quatro meses no país. Adquiri uma intimidade com Buenos Aires que fotografar a cidade como turista já não fazia mais sentido; preferi caminhar pelo bairro, conversar com as pessoas, conhecer o que minhas amigas amam ali e contar o que algumas paisagens me fazem lembrar.

    Não vi a casa esvaziando até ser fechada, concentrando meu choro de saudades antecipadas em um único dia. Mentira, chorei um pouquinho antes, sabendo que dentro de um tempo seria minha vez, a de deixar as pessoas lindas que conheci e com quem convivi nesse período de intercâmbio. Ane, nesse momento, me abraçou e disse: “Pensa, você teve vários irmãos aqui” e, claro!, chorei mais um tanto. Eu precisava voltar pro Brasil, mas a vontade era a de manter esse país imaginário onde múltiplas nacionalidades se encontravam em uma estranha – e às vezes inconstante – harmonia. Cheguei aqui e chorei mais um pouco, numa última despedida. E então parei. Parei para olhar e pensar nesse espaço que me recebia de volta.

    Não estranhei São Paulo. Andar pela Paulista, passar pela papelaria do bairro, pegar o metrô foram situações que me poderiam fazer crer que nunca estive dois mil quilômetros distante. Pensei que eu pudesse me atrasar no meu primeiro reencontro na catraca, acostumada que fiquei a sair dez minutos antes de casa para qualquer coisa no interior da Argentina. Não me atrasei. Calculei como de costume o trajeto até o metrô e da baldeação; calculei tão bem que quase desconfiei de nunca ter saído da cidade. Extrañé, porém, algumas coisas de Santa Fe e muitas pessoas que com ali vivi, ainda que faça pouquíssimo tempo da minha partida.

    viver é impreciso

    ♫ Los hermanos – Elis Regina

  • a luta continua (ou sobre como ela nunca tinha parado)

    educación para chile

    Brincamos que o quarto delas é a Embaixada Chilena. O meu, dividido com outras duas brasileiras, seria uma das Embaixadas Brasileiras da casa. Experimentamos o ineditismo da fronteira entre esses dois países. Eu e elas temos quase a mesma idade e opiniões políticas convergentes. Sexta-feira adentrei a esse território chileno para contar-lhes minha angústia com a ação policial em São Paulo no dia anterior. Como resposta soube que no mesmo dia a polícia bateu em estudantes que protestavam em Santiago.
    Não há conversas informais ou palestras que alcancem o tema das universidades na América do Sul que não terminem com um suspiro de “E o Chile, hein?”. Já são dois anos de mobilização que tenta reverter a bizarra condição de educação 0% pública e gratuita no país. Essa é uma das heranças medonhas do governo Pinochet (uma das outras podemos arriscar dizer que é uma polícia preparada a bater em manifestante até deixá-lo desacordado).
    O Chile não é o Brasil e as nossas agendas sociais são diferentes em muitos pontos. Mas fiquei me perguntando por que, para além dos dois passos que separam a minha porta da delas, estamos assim tão próximos. Uma das respostas está na época em que vivemos: já não precisamos de modelos para discutir política. Pelo menos, não dos grandes, não dos dois blocos que se opunham em épocas de Guerra Fria. Nós podemos falar que o jeito como se organiza nossa vida pública (seja na universidade, na escola, no ônibus, nas ruas) já não faz mais sentido e buscar métodos para deixar isso claro para outras pessoas.

    sim à livre manifestação

    Desde o dia 6 de junho, buscava informações sobre o movimento para redução da tarifa de ônibus em São Paulo. Porque essa foi minha motivação para seguir o protesto do Movimento Passe Livre pelas ruas, em 2011, com a ideia de que “3 real é surreal”. Naquela época também teve gente apanhando da polícia, teve cerco na Praça da República, teve direito constitucional de livre manifestação desrespeitado. A classe média xingou muito no twitter a interdição da Paulista. A tarifa não baixou.
    Nenhum de nós sabe muito bem de onde vem ou para onde vai essa onda de protestos desses últimos tempos, mas é bonito ver que um dia muitos decidiram que a rua é para as pessoas. Que um dia se pôde sair pelas grandes avenidas por suas idéias de maneira livre. E por mais que digam que não são os 20 centavos, eu continuo sustentando essa pauta. São 20 centavos com mais 3 reais. (e quem souber, me responde: com quantos vinte-centavos se compram as bombas de gás lançadas em todos os cantos?)
    Há uma coisa muito boa em estar na Argentina nesse momento. Embora haja quem acuse a inflação– e eu posso concordar que o Brasil é um lugar caro pra se viver; São Paulo ainda mais-, a questão da passagem de ônibus não pode se restringir a essa variante. O prefeito não pode se vangloriar, em blog chapa-branca (velhas práticas em novos meios), que o aumento foi inferior ao da inflação acumulada no período 2011-2013, por um motivo muito empírico da minha vida atual: moro na cidade que tem a tarifa de ônibus mais alta da Argentina. Pago um pouco mais de R$ 1; os estudantes daqui pagam menos do que isso. A inflação, no entanto, é um troço galopante e um receio frequente (o que a faz mais galopante ainda) no país. Nem por isso tiraram dos ônibus de Buenos Aires as plaquinhas de que o transporte lá é subsidiado pelo governo ou supuseram que o direito dos cidadãos ao transporte público deva ser colocado em xeque. Não chame de inflação o que é falta de vontade política, na mesma pegada de não chame de “marcha contra a corrupção” o que é uma luta política por soluções práticas para problemas cotidianos.
  • pequenos relatos envolvendo comida

    dulcemente

    Paramos por alguns minutos na frente da prateleira onde estava o leite e começamos a comentar o aumento do preço. Dos cinco pesos já é possível encontrar um litro por sete e nós de vinte-e-poucos pensamos se era assim que nossos pais viviam com a inflação dos anos 80. No começo do intercâmbio, uma sorveteria aumentou o preço do sorvete de doze para quatorze pesos. A concorrência, porém, continua alimentando o vício de grande parte dos moradores de casa (somos 35, lembrando), ao oferecer três bolas por dez pesos.
    Ainda sobre a inflação, participamos de um protesto na universidade que consistia em pagar 5 pesos por um prato de ravioli, com molho vermelho, pão e mixirica, como forma de provar às autoridades que é viável que esse seja o valor do comedor universitário. O pôster do agrupamento que organizou o ato dizia algo como “para que a inflação não Kastigue os estudantes” (o “K”, de Kirchner, é a forma de cutucar Cristina). No momento, os preços variam de 12 a 18 pesos (cerca de 5 a 9 reais). Outras universidades do país, no entanto, contam com comedores muito mais baratos por conta do subsídio, coisa que não existe por aqui.
    Adotei uma política de não abrir as newsletters de instituições culturais de São Paulo que chegam na minha caixa de entrada. Abri uma exceção dia desses quando vi o assunto e pensei “Ei, essa palestra parece boa, quem será que a apresentará?” e descobri que era minha orientadora e senti aquilo que queria evitar quando decidi não abrir esses e-mails: vontade de aproveitar a vida cultural de São Paulo. A única analogia possível para essa situação foi feita por uma amiga mexicana. Quando ela está no México, na cidade onde os pais moram, não sente vontade de comer, porque está ali, prontinha, a comida, mas quando vai de volta pra cidade onde estuda, começa a relação direta entre falta de comida preparada e vontade de comer.

    rico

    Cada vez que um hispanohablante diz que meu espanhol é muito bom, penso que preciso voltar para casa sabendo cozinhar muito bem. Nunca estudei formalmente o idioma, mas por falta de tradição em traduzirem livros importantes para o português, passei grande parte da minha graduação lendo em uma língua que desconhecia. Com uma rara autoconfiança tentei o intercâmbio enviando pelo sistema da universidade o certificado mais xinfrim que pode existir (de um curso online que fiz por dois meses sem nenhum acompanhamento tutoreado ou algo que o valha) e comecei a ver filmes e ouvir músicas em espanhol. Parece que funcionou. Vim para cá com a triste pecha de inábil da culinária e até o momento já posso compartilhar que sinto orgulho de um combinado de legumes com queijo que fiz, do macarrão com brócolis e molho branco, do purê de cenouras. Depois de sofrer com um molho ultra-ácido de tomate em caixinha e descoberto como se faz molho branco já pude inventar de fazê-lo com cogumelo e misturar uns legumes. Minha crença no autodidatismo está alcançando níveis estratosféricos; só não está mais alta que a cotação do dólar paralelo na Argentina.
    As famosas coxinhas são usadas por brasileiros como tática de aproximação a pessoas de outras nacionalidades; com bastante êxito, em geral.
  • presente: ahora y siempre

    A idéia de uma história comparada na América Latina é tema que pode dar calafrios em alguns historiadores. Apegar-se ao fato de que cada evento é único no tempo e no espaço é bastante coerente, mas não o suficiente para me impedir de comparar constantemente minhas experiências e conhecimentos sobre Brasil e Argentina. Hoje, especialmente, as comparações afloraram por muitos lados.

    Precisava terminar de ler um texto para a aula de amanhã cedo, mas deixei-o de lado e resolvi ir para a rua. Tanto as palavras no papel quanto o que diziam os manifestantes versavam sobre o mesmo assunto: a luta pela memória a respeito da mais recente ditadura militar argentina. A marcha pelo Día de la Memoria aconteceu em muitas cidades argentinas pelo aniversário do golpe de 1976 e é uma das formas de não esquecerem o que se passou. Algumas vezes me sentia sufocada pela dor e pela beleza do ato e, apesar do incômodo que algumas pessoas sentiram pela quantidade de bandeiras, me senti parte de um evento democrático. O verde, o vermelho, o preto, o azul e o amarelo coloriam as ruas e davam uma noção de soma muito mais do que de rupturas. As múltiplas cores rompem com dicotomias e permite que saibamos que a democracia é essa coisa confusa de grupos lutando por ideais diferentes. À frente, iam as mães da Praça de Maio com uma faixa lembrando os 30.000 desaparecidos da ditadura cívico-militar.

    Em São Paulo, acostumei-me a andar em manifestações políticas cercada por policiais. Acostumei-me também à idéia de que a caminhada pode descambar, a qualquer momento e por qualquer motivo, em uma violenta repressão. Nas ruas de Santa Fe, no entanto, senti-me espectadora e personagem de uma festa cívica. Não é à toa, porém, que seja importante para os atores sociais daqui ocuparem as ruas. Luis Alberto Romero me ensinou em um texto, que li nessa semana, que

    estas organizaciones prefiriron las demonstraciones a los monumentos. Por esa vía, hicieran una doble contribución, a la democracia y a la memoria. Respecto de la primera, sumaron a los escenarios representativos una arena pública de participación directa y activa, en la que lograron éxitos importantes y se convirtieron en actores ineludibles. Respecto de la memoria, contribuyeron a hacer visible lo invisible, y a evitar el olvido.”

    Ao contrário do que muitos ainda pensam no Brasil, não é uma luta pela vingança ou não é uma questão de ódio. E também é mais do que uma vontade de que a história não se repita. É uma busca constante para que as instituições democráticas possam agir e existir como tais e para que os erros – se não podem ser reparados – ao menos sejam conhecidos e reconhecidos; penalizados, enfim, como se julga necessário pelas vias institucionais. Por fim, para que a história possa ser escrita não apenas pelos assassinos (como diz determinado personagem do filme “A história oficial”) e para que tenha subsídios o bastante para narrar, interpretar e sustentar sua posição crítica perante os fatos.

    Eu adoraria falar um pouco mais sobre a comparação com o Brasil, mas o texto A verdade e o recalque, de Maria Rita Kehl, pode fazer isso por mim nesse momento.

  • primeiras considerações

    dos a la costanera
    Divido casa com mais de trinta pessoas. Áreas comuns com todos, banheiros com outras meninas, geladeira com mais quatro e quarto com mais duas. Tudo aqui é intenso e passageiro. Toda dor e toda alegria aparecem com toda a força e se esvaem em um turbilhão de outras sensações. A única coisa que demora a acabar é o arroz que cozinhei há uma semana.

    Ainda não me acostumei ao tempo. Não há hora alguma de diferença com o Brasil, mas estou em um fuso horário particular. Da cidade cinzenta que escurecia antes das 18h, mudei para um lugar ao sul, onde o sol começa a esboçar sua ida às 19h. Por volta do meio-dia, a cidade fecha. Não há bancos funcionando, tampouco repartições públicas. As lojas reabrem umas 16h e permanecem assim até umas 21h.

    repercusión
    Minha percepção de tempo na Argentina é sempre outra, percebo. Há prédios antigos orgulhosamente conservados. Meninos na rua, chutam objetos, improvisam um futebol e se chamam de Maradona (só vi o Messi uma vez: anunciando vitaminas de emagrecimento na parte de trás de um ônibus). Os peronistas estão no poder. Foi deles a primeira repercussão que tive da morte de Hugo Chávez aqui, com a pichação na esquina de casa. No cartaz, a frase “Hasta siempre comandante!”, com Néstor Kirchner acenando logo atrás. As palavras seguem na parede; os cartazes foram arrancados.

    Poucos dias depois, estávamos passeando quando um carro rodava a praça do centro histórico buzinando. Pensei em casamento, mas nos avisaram que o papa era argentino. Pouco depois, as igrejas começaram a tocar seus sinos incessantemente e lembrei que moro do lado de um convento. As freiras, entretanto, celebraram em mais silêncio. Na televisão, a manchete “Che, el papa es argentino”, no anúncio de uma festa um trocadilho com o Sumo Pontífice e a palavra “batata” em espanhol, e, em casa, uruguaia e chilena comentando sobre o efeito no ego argentino.

    héroe