• os subsolos e os silêncios

    Da viagem a Brasília, em 2018, eu me lembro de algumas coisas. Mas poucas lembranças me perseguem como o passeio pelas galerias do Congresso Nacional. À época, fiz piada. Disse que não poderia me candidatar para cargos legislativos, visto que o excesso de carpetes no prédio não deixaria minha rinite alérgica em paz. Fora isso e mais umas poucas linhas, não escrevi muito sobre aqueles dias de férias, entre Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal. Foi uma época difícil. Era setembro e ali eu já entendia que Bolsonaro seria eleito. Uma porta muito perigosa estava se escancarando.

    Andando pela galeria do Senado, o homem que guiava o passeio no Congresso parou próximo ao busto de Darcy Ribeiro. Deve ter explicado algo sobre a figura, um desses intelectuais brasileiros com atuação política e preocupação com a democratização da educação que poderia estar facilmente na mira de campanhas de difamação da extrema-direita nacional. Ao falar desses bustos espalhados pelo Congresso, o guia mencionou que um busto em homenagem a Filinto Müller havia encontrado repouso em algum lugar daquele prédio, em alguma galeria subterrânea,.

    Eu me surpreendi meio de tonta, porque àquela altura da vida eu já tinha claros os problemas da monumentalização de figuras políticas, dos usos controversos da História, dos debates sobre memórias nessas homenagens aos “grandes personagens do passado”. O chefe da polícia política do Estado Novo ter um busto com suas feições na casa legislativa onde foi senador não é motivo de espanto. Mesmo quando você tem conhecimento de que Müller advogava em favor do uso sistemático da tortura em prisioneiros e foi personagem central na entrega de Olga Benário aos nazistas alemães.

    O que me volta recorrentemente à lembrança é um dado muito específico desse percurso: o de que o busto havia sido movido ao subsolo. Parecia uma metáfora óbvia, pouco criativa. O Senado Federal entregava-a a mim de bandeja. A de que tipo de busto ficaria visível ao público e qual existiria, com similar legitimidade, mas escondido. Quase como se houvesse pudor, mas um pudor leve, sutil. Inócuo, afinal. Um pudor que em 2018 foi se tornando hipócrita diante das elegias públicas a reconhecidos torturadores e assassinos.


    Meses atrás, passei uns dias no Rio de Janeiro a trabalho e, por conta da minha hospedagem a poucos metros do Forte de Copacabana, decidi usar uma manhã livre para visitar o Museu do Exército que ocupa aquele espaço. Minha primeira motivação era descobrir de que maneira os museólogos da corporação abordariam o fato mais importante ocorrido no local. A Revolta dos 18 do Forte completou cem anos agora, em 2022. Eu queria entender como o Exército conta a história desse motim que vincula uma parte dos soldados brasileiros à esquerda política. O que poderia ser apenas uma ideia temerária de um punhado de tenentes, acabou reverberando em fatos como a Coluna Prestes (1925-1927) e a Intentona Comunista (1935). Com ideias que persistiram e resistiram até o Golpe de 64.

    O Forte de Copacabana, mesmo em um dia de semana, tinha bastante gente. Alguns turistas, pessoas tomando café no restaurante de lá, e um movimento constante de cabos e soldados. Já sobre a expografia do Museu do Exército, preciso dizer, é dessas de gosto duvidoso. Composta basicamente de dioramas, criam cenas em que manequins, objetos de época e fundos desenhados convivem para “mostrar o que aconteceu”. E, em cada um dessas cenas expostas, algum silêncio me dizia mais do que qualquer revólver enferrujado.

    Canudos ou Contestado tornaram-se campanhas da instituição contra o fanatismo religioso; nenhuma menção à luta pela terra que caracteriza esse território mais do que samba e feijoada. Em um dos dioramas, o marechal Floriano Peixoto aparece apenas como um presidente muito empenhado em seu gabinete, e não o carrasco de Desterro – hoje chamada em sua funesta homenagem. Florianópolis. Seguindo a ordem cronológica, chega-se à cena dos 18 do Forte. Representados por 3 manequins e uma cena de rua no Rio de Janeiro, eram referidos apenas como homens corajosos.

    O silêncio é extremamente eloquente se você souber escutá-lo. E o percurso no museu chega a seu ápice com a Segunda Guerra Mundial, em uma encenação dos praças em Monte Castelo, na Itália. É ali também que a exposição sobre a história do Exército chega ao fim. A sala seguinte, com dispositivos mais modernos que exibem vídeos da ação das Forças Armadas Brasileiras no Haiti, apresenta artefatos dessa missão da ONU comandada pelo Brasil.

    Um desavisado poderia até imaginar que não aconteceu absolutamente nada envolvendo o Exército brasileiro entre 1945 e os anos 2000. Dessas histórias que não apresentamos nas galerias nobres, ficam disfarçadas em subsolos por aí.


    Publico esse texto em homenagem à memória de Dermi Azevedo, que foi meu colega de repartição na década passada, morreu em 2021 e carregou em seu corpo e em sua história as marcas da ditadura (que sequestrou não só ele, mas sua esposa e o filho menor de 2 anos). Quando trabalhamos juntos, eu acreditava que os processos da Comissão da Verdade poderiam dar a ele e ao Brasil a justiça, a memória e a reparação das atrocidades que a gente insiste em esconder em porões e exibir em praça pública.

  • i wasn’t looking to change, i’ll never be the same

    Um pouco mais de gente e um pouco menos de paisagem das férias, que estavam no filme da câmera. Essas foram tiradas com uma Olympus MJU II; derradeiras, porque em seguida ela parou de funcionar. Essas daqui foram tiradas no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em Brasília e as últimas do filme são de São Paulo (pra acabar o filme curtindo o fim de férias passeando na própria cidade).
    As outras fotos das férias ficaram aqui.
  • antes que o verão me alcance

    É quase verão de novo. E as cores e os sorrisos do Rio de Janeiro ainda estavam dentro de um rolo plástico, escondido dos olhos da gente. O diminuto espaço também guardava uma quantidade absurda de lembranças, algumas que eu até tinha esquecido. Meu aniversário, Carnaval, outros aniversários, festas juninas. Eu poderia jogar essas fotos aqui e me esquecer delas pra sempre ou para quase sempre e quando eu voltasse a vê-las eu tentaria sentir cheiros, adivinhar a temperatura ambiente, entender o que estava passando na minha vida. Está cada vez mais claro que alcançar isso é impossível e, nessa impossibilidade, eu só arrisco dizer que essas imagens devem contar alguma história que eu ainda não dou conta de ler. Tateio sentidos nos fragmentos, esboço textos desajustados. Tenho um pouco de vergonha, da minha alegria, da minha preguiça, de mostrar e contar essas coisas. Às vezes parece que tudo tem mudado muito rápido mas talvez essas fotografias sejam uma honesta contribuição à crença de que – para além da beleza do mutável ou da instabilidade do contemporâneo – montes de felicidades cotidianas tem conseguido se manter.


  • uma cidade a cantar

    Três dias no Rio de Janeiro no começo do ano e todas as fotos tiradas com celular e em preto-e-branco. Parecia um tipo novo de heresia, o de tirar a cor dos trópicos efervescentes da cidade. Para compensar, enchi-me de vários outros estereótipos. Teve a fatídica cerveja e depois uma cachaça na Lapa (prometidas por Taís há cerca de dois anos ou mais), show do Metá Metá no Circo Voador. A hospedagem dava vista pro Maracanã e pro morro da Mangueira, o que me obrigou a cantarolar quase diariamente meu samba-enredo favorito da verde-e-rosa. Teve mate com limão no Leme, teve pré-carnaval no aterro do Flamengo. Ana Paula me levou para comer no restaurante favorito de Getúlio Vargas, ali pelo Largo do Machado. Graças a uma curiosidade tétrica minha, Ana ainda precisou visitar o quarto do véio, ver o pijama ensanguentado e até a bala que matou GV. Tantos anos de faculdade de História ouvindo críticas a essa museografia que não quis deixar pra outra hora. Até porque, de tudo que não vivi, a única coisa de que tenho saudade é do Rio de Janeiro capital federal. Pra tirar um sarro, chamo a cidade de capital da corte; mas confesso que fico imaginando os usos do Real Gabinete Português de Leitura nos idos do século XIX. Depois dessas fotos em preto-e-branco ainda fiquei uma semana ouvindo bossa nova sem parar. Tá pago o pecado.

  • memórias para noites de insônia

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    ♫ Kate Nash – Lullaby for an Insomniac

  • and we should never reject love

    Na rodoviária do Rio de Janeiro, com a passagem recém-comprada de volta para São Paulo, sentei-me no balcão de uma lanchonete, enquanto comia um pão-de-queijo. Um sorriso parecia morar dentro de mim. Um sorriso profundo, um sentimento de plenitude. Eu tinha ensaiado algumas viagens na minha cabeça desde o início do ano. Pensava em ir pra praia, pensava em ir pro meio do mato, ficar sozinha, em silêncio. Organizar as coisas mentais que na rotina da metrópole não dou conta. Troquei todas as opções por um final de semana no Rio. Na capital da corte. A princípio, achei uma troca arriscada. Na rodoviária do Rio de Janeiro o sorriso profundo me mostrava que fiz a melhor escolha possível. Que eu entrei em uma bolha de amor e que eu fui abraçada amplamente por gente muito amada. Eu perguntava, assim, meio de bobeira, como fui parar ali. Como fui parar nesse tempo-espaço em que eu só conseguia assobiar que lar é qualquer lugar em que eu esteja com vocês.

    No ônibus, ninguém acenava para mim. Tampouco em São Paulo alguém tinha acenado quando parti para o fim-de-semana. Em São Paulo, a bem da verdade, ninguém se despedia de ninguém na rodoviária, à uma da manhã. O setor de embarque jazia em um silêncio desolador, com uma luz meio turva. Pensei “Lá vou eu, viajar sozinha de novo”. Lá fui eu, pegar o ônibus errado e ter que levar bronca da cobradora na minha primeira meia-hora de Rio de Janeiro e precisar ir a pé de Botafogo a Flamengo. Lá fui eu almoçar com amigos na livraria que conheci três anos atrás. Lá fui eu escutar de Carol que já nos conhecemos há doze anos e que, mesmo a sétima série C não sendo mais do lado da sétima série B, mesmo a gente não se encontrando no mezanino durante o recreio, conseguimos conversar sobre a vida como se não fizesse anos que perdemos o contato cotidiano. Lá fui eu lembrar que se não fosse por Carol eu talvez nunca teria me apaixonado por fotografia aos quinze, e talvez não conhecesse os amigos que me levavam para exposições com guardinhas mediadores de arte-educação. Lá fui eu conhecer pessoalmente meninas que habitam minha vida há mais de um ano. Lá fui eu gritar no ouvido de Alile a saudade que sinto e ganhar abraços de pessoas que há tanto eu esperava! E então eu fui e combinei com Brunna de voltar mais tarde para poder saber da vida dela, para poder colocá-la a par da minha. Se não fosse lá, não teria descoberto que Camila é sim uma querida.
    Da janela do ônibus, eu via três pessoas acenando para alguém que voltava comigo. E lembrei das férias no interior. De como eu ia com meus avós mas quase sempre queria ficar mais e minhas primas me levavam dias depois para a rodoviária e eu, adolescente, as via acenando freneticamente para mim, sem vergonha alguma. Eu quase podia enxergá-las ali, no Rio de Janeiro, acenando para mim e me mostrando que toda história tem um começo. E que uma coisa que nunca estive dessa vez foi sozinha.


    ♫ Kid Foguete – Mostly Blue

  • imagens sem nome

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    “XIXO rio que fazia uma volta atrás da nossa casa era a  imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrásde casa.Passou um homem e disse: Essa volta que o rio faz se chama enseada.Não era mais a imagem de uma cobra de vidro quefazia uma volta atrás da casa.Era uma enseada.Acho que o nome empobreceu a imagem.” Manoel de Barros, de O livro das ignorãças.

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    Isso foi em setembro, na quermesse da festa da padroeira de Paraty.

  • quem samba na beira do mar é sereia

    ♫ Clara Nunes – O mar serenou