Nunca pensei que diários de viagem seria um gênero literário que me chamaria a atenção nem sequer imaginava que um dia eu, a senhora displicência, daria conta de escrever por tanto tempo em uma viagem. Acho que o primeiro diário de viagem que eu gostei de verdade de ler foi o
Kimland, da
Juliana Cunha, que já não se encontra para comprar (quem leu leu, quem não leu pode me pedir emprestado que eu empresto). Depois, rabisquei todo o
Viajes – De la Amazonia a las Malvinas da Beatriz Sarlo. E, finalmente, entrei em uma fixação ao ler
Diário de Oaxaca, do Oliver Sacks, e falei dele para cada pessoa que encontrei na época, e depois também, quando estava em Oaxaca e cercanias.
Fiquei em dúvida se trazia para cá as anotações que fiz nas três semanas que andei pelo México mas algumas amigas pediram que eu compartilhasse minhas impressões por aqui. Escrevo em pequenas notas porque me falta paciência para escrever uma narrativa coesa. Algumas anotações ficaram só no caderno, para fingirmos que esse conceito tão recente que é a “privacidade” significa alguma coisa.
No Museu Etnobotânico de Oaxaca – uma das grandes razões para eu ter colocado a cidade no meu trajeto – um cartaz dizia que servidor público pode falar em sua língua indígena. Lembrei do recente assassinato de índios não-contactados no Brasil, e de toda ideia que se tem no meu país de que indígenas não são sujeitos contemporâneos. É uma pena que o direito de muitos povos dependa da ignorância de um (nesse sentido, o Estado nacional brasileiro segue sendo uma metrópole e tanto).
No Museu de Filatelia de Oaxaca, eles tem uma coleção de cartas de Frida Kahlo, mas não é possível ler por completo cada uma delas, já que estão escritas na frente e no verso. Em uma das que abri, escreveu Frida a seu médico (ela o chamava de “queridismo doctorcito”) sobre o aborto que teve em Detroit. Escrevia um pouco irritada porque o médico – o que fez o procedimento – falou algo sobre ter seu próprio tempo. Ela se perguntava se ele dizia isso a todas as mulheres que abortavam ou se pensava que ela realmente poderia ter um filho nas condições de saúde em que se encontrava. Dias depois, uma exposição em um centro cultural da cidade tematizava o aborto a partir de ex-votos de católicas que agradeciam a seus santos de devoção pela possibilidade de passar pelo procedimento de interrupção da gravidez. Como o México é uma federação composta por estados unidos, cada um tem uma legislação própria, que vai de décadas de prisão para mulheres a legalização até a 12ª semana.
As línguas me fascinam. A possibilidade de transmissão de comunicação verbal de pais para filhos e a elaboração comum de textos escritos dentro de um mesmo código. Me fascina também o conhecimento de outras línguas, a compreensão de sons não-habituais a nossos ouvidos. E então ver as “estelas” de Monte Albán traduzidas, aquelas inscrições zapotecas cravadas em pedras enormes me deixam atônita talvez mais do que imaginar como se rolaram pedras tão grandes monte acima, ou de ter lido que uma das estelas representava a elite do lugar, em que 5 de suas 6 figuras eram femininas.
Quando se viaja muito sozinha, vão se criando idiossincrasias. Uma delas é siga o barulho. Quarta-feira, em Oaxaca, segui o som de fanfarra e rojões e cheguei a uma festa que tomava a Avenida de la Independéncia, para irritação dos motoristas. Outra parte da festa estava no quintal da Igreja de la Soledad. Ali, jovens equilibravam uma grande bola incrustada em um grande pau em que se lia “San Sebastián Martír”. Outros jovens dançavam e a fanfarra parecia ter começado uma canção conhecida deles. Alguns casais dançavam, aos saltos. Muitas das pessoas usavam camisas verdes. Ao meu lado, um carrinho vendia milho. Uma mulher, com camisa verde, aproximou-se para comprar uma espiga e eu aproveitei para ler o que estava escrito em letras brancas no seu peito: “Burocratas unidos”. Não me ajudou a entender o propósito da festa mas achei um nome bem engraçado para um conjunto de festeiros. Dias depois, outra calenda – descobri que é assim que se chamam essas festas – com uma bola escrita “Sindicato do Poder Judiciário” cruzou meu caminho e achei igualmente engraçado.
Há que ser muito burro ou mal-intencionado para crer que existem culturas puras ou que faça algum sentindo, nesse extremo ocidente que é o continente americano, defender os pilares da sociedade ocidental. No mercado em Oaxaca, doces em forma de caveira dividem espaço na mesma prateleira com velas que tem a foto de João Paulo II. No dia seguinte à minha chegada à Cidade do México, um desfile de Día de Muertos tomaria conta da região central. S. me contou, enquanto me levava ao hostel, que dois anos atrás esse desfile não existia, mas que por ter sido representado em um filme recente de James Bond, adotaram a “tradição” criada por roteiristas de 007.
Ao lado da árvore gigante de El Tule – um Ahuehuete ou Sabino de mais de dois mil anos – um jardim, que ocupa área semelhante com rosas, margaridas, uma fonte, figuras recortadas em arbustos. O jardim é o justo oposto da árvore: sinal do controle e da racionalização do ser humano sobre a natureza.
Descobri que Porfirio Díaz, o presidente mexicano destituído pela Revolução de 1910, nasceu em Oaxaca. Díaz foi presidente do país por 35 anos e talvez uma das inúmeras figuras que inspirou Caetano Veloso a escrever os versos “será que nunca faremos senão confirmar / a incompetência da América católica / que sempre precisa de ridículos tiranos” na música
Podres Poderes. Chama-se também Porfirio Díaz o personagem que dá o golpe de Estado em
Terra em transe. Acontece que cada vez que passo por algum lugar da cidade que leva o nome de Díaz vem, do fundo da minha cabeça, a voz de Paulo Autran gritando
“APRENDERÃO!”. Glauber Rocha colonizou meu pensamento. [Depois que escrevi isso no diário, achei impróprio, porque Glauber passou sua obra toda tentando descolonizar pensamentos. Também achei curioso que Oaxaca foi a província onde nasceu Benito Juárez, o presidente mais popular da história mexicana]
N., um dos donos do hostel, falou sobre algo que havia caído com o terremoto, mas não entendi onde. Ele usou a palavra “panteón”, o que me remeteu a uma construção greco-romana em homenagem a heróis. Como não compreendi, perguntei onde ficava, porque ainda tinha um dia inteiro na cidade. Ele me perguntou se eu sabia andar de bicicleta e em pouco tempo estávamos circulando pelas ruas dali. Entramos em um cemitério – era isso que significava, afinal, a palavra “panteón” – e seguimos em cima da bicicleta, olhando as lápides, algumas delas danificadas pelo tremor de dois meses antes.
Fui para a fronteira com a Guatemala, saindo de San Cristóbal de las Casas, em um grupo cheio de senhoras. Dessas meio idosas que viajam juntas e falam muitas bobagens. Uma delas me apelidou de “Chica de Ipanema”, e eu só não a corrigi como sendo “Chica de la Subprefeitura de Santana” porque ia dar muito trabalho explicar e não seria nada sonoro. Passaram a viagem toda conversando e alguns assuntos até bastante interessantes, como a permanência de um mesmo partido há tantas décadas no poder. Em algum momento, elas começaram a falar sobre uma pomada feita à base de maconha, que eu descobri na Cidade do México que estava até bem na moda, sendo vendida ilegalmente nos trens do metrô com paracetamol. Uma disse a outra que ela era bem entendida nessas coisas de drogas, e a primeira respondeu que sim, porque tinha aprendido com a novela. E desatou a contar como descobriu que seu vizinho era traficante porque tinha os mesmos trejeitos que o personagem da televisão…
A maior parte do tempo que passei em Chiapas choveu. Na quarta-feira, ficamos na cama, eu, E. e os sobrinhos dela, assistindo a um filme sobre lendas mexicanas. A lenda de
La Llorona apresentou a morte dos filhos da mulher como uma fatalidade, ao que E. interrompeu para contar que a lenda mesmo é que uma mulher, ao descobrir que foi traída pelo marido, afoga seus dois filhos no rio. Ao perceber o que tinha feito, tira a própria vida no mesmo rio e passa a vagar pelo mundo, chorando e gritando por seus filhos. Não satisfeita em me explicar melhor os meandros, E. me contou que dias antes um primo dela de um pueblo próximo, estava em casa e ouviu o choro da Llorona. Enviou para ela um áudio do choro e contou que os vizinhos tinham escutado também, mas ninguém teve coragem de ir à rua naquele momento. Apesar de não querer acreditar, meus pêlos do braço se arrepiaram quase imediatamente.
No ano em que conheci meus amigos mexicanos, estava na moda uma música chamada Yo no sé mañana, do nicaraguense Luis Enrique. Em San Cristóbal, escutei-a tocar em dois lugares muito diferentes e fiquei lembrando como na época em que a escutei pela primeira vez “não saber o amanhã” era fonte de grandes angústias. Cada vez que em uma festa ou em casa alguém a escutava, eu ficava um pouco desesperada porque não tinha respostas sobre se amanhã estaríamos juntos ou se amanhã se acabaria o mundo. Anos depois, a música remetia a uma boa nostalgia e a um certo alívio sobre, exatamente, não saber o amanhã. Passei a encará-la como uma versão da frase latina “Carpe diem”, só que melhor porque dançável ao ritmo de salsa.
Visitando ruínas arqueológicas, lembrei-me do último trabalho de campo que fiz na faculdade. Um grupo de estudantes de História que levou 24 horas para chegar ao extremo sul do Brasil, na fronteira com a Argentina e muito próximo ao Paraguai. Ao longo de uma semana, percorremos diversos sítios que foram missões jesuíticas, espaços onde a Companhia de Jesus buscava angariar almas indígenas para seu dia do juízo. Essa relação entre catequizadores e indígenas por muitas vezes chegou a ser também uma tensão entre religiosos e colonos que não disputavam exatamente as almas, mas os braços para trabalho escravo. Para além dos textos que deixaram na época da América portuguesa, os pedaços de pedras que restaram naquela região são indícios dessa história. Na última ruína que visitamos
lá em 2012, ovelhas pastavam e o cemitério ao lado do que tinha sido a igreja tinha flores recentes. Ao debatermos isso, recordo de um ou dois colegas que tiveram a pachorra de sugerir que o cemitério atual e os corpos que morreram depois do período que nos interessava deveriam ser transferidos porque atrapalhavam os trabalhos arqueológicos. Até hoje desacredito dessa proposta aventada, tamanha arrogância que transmitia. Além da ignorância sobre o papel de alguma maneira sagrada dos mortos em relação a seus vivos e um possível desrespeito com as raízes guarani que ali existem, penso nessa ideia como um estranho caso de investigação histórica que relevava a passagem do tempo naquele espaço. (Vendo os montes de turistas que visitam construções zapotecas, mexicas, maias, me pergunto que serventia tem para as comunidades cercanas essas escavações arqueológicas. Para o Estado mexicano serve para preencher espaços nas notas de peso e para ganhá-las com os ingressos. Volto para casa com essa dúvida sobre os
usos culturais da cultura ali)
No mesmo dia em que fui às Pirâmides de Teotihuacán, decidi conhecer a Basílica e Guadalupe (dica da
Lari que me passou
um link que explicava como fazer tudo isso e chegar destruída no hostel depois). A história da aparição da Virgem de Guadalupe era das minhas favoritas na mitologia que me formou. A bem da verdade, as histórias de aparições da santa eram um bom conjunto porque já não falavam de martírio. De alguma forma, era o triunfo da misericórdia, em que uma mulher surgia para acalentar seus filhos (no caso da Virgem de Guadalupe há uma clara associação com a Mãe Terra, ou com uma deidade similar à Pacha Mama dos povos andinos), ao invés de narrativas de irmãos que se matam, pessoas transformadas em estátuas de sal, deus testando crença e fidelidade de alguém pedindo sacrifício de seu filho.
Viajando sozinha, me perco de uma a duas vezes por dia. No dia 31, acordei, tomei café da manhã, lavei umas roupas e decidi ir ao Museu Frida Kahlo. Estudei mapas, saí do hostel, me perdi uma vez. Retomei o caminho certo, cheguei na frente da antiga casa da artista e duas filas em sentidos opostos estavam formadas: uma com quem comprou os ingressos pela internet e outra para os que como eu só chegaram. A esquina estava tomada de vans de turismo. Por ter pouca altura também tenho pouca paciência. Fiz contas rápidas e percebi que levaria pelo menos uma hora para entrar e achei que a espera e o ingresso não compensavam por um lugar lotado de gente. Fui ao mercado para almoçar e decidir o que fazer e lembrei que por te me perdido tinha descoberto onde fica a Cineteca Nacional de México. Ao perceber que sei menos de cinema mexicano do que de Frida Kahlo, decidi ver uma produção Canadá-México chamada
Mis noches harán eco. E ainda estou maravilhada.
No dia 3 de novembro, fui ao Museu de Arte Moderna, que esteve fechado nos dias 1 e 2 de novembro pelo Día de Muertos. Na exposição de fotografias de Garry Winogrand, uma mulher, voluntária do museu, perguntou se podia me acompanhar naquela sala e fazer um exercício de olhar algumas imagens.
Na primeira que escolhi, se via em primeiro plano uma jovem atravessando uma rua que supunhamos ser em Nova York nos anos 1960. Fui descrevendo a cena que tinha diante de mim para minha companheira de exposição até chegar à percepção de que a imagem me intrigava porque eu podia me colocar na posição do fotógrafo – querendo observar e guardar imagens desses dias, de tantos outros, das pessoas que amo e daquelas que nem conheço – e também na posição da mulher fotografada – andando há dias sozinha por caminhos citadinos.
Chegando de avião a São Paulo, de madrugada, fiquei observando como ia baixando o avião e como cidades iluminadas à noite compunham uma espécie de tecido rendado com figuras geométricas de tons amarelo-alaranjados. Os vulcões, as montanhas, deixei para trás e minhas paisagens voltaram a ser serras e prédios. Ou, para ser sincera, as paredes do meu quarto, a primeira coisa que arrumei quando cheguei em casa.