• a resistência e a memória

    O contexto da conversa, não me lembro, mas Vivian me pediu para ir ao Memorial da Resistência e contar a ela o que achei. Fui ontem e Vivian não está por perto; escrevo aqui para contar pra ela e para mais um punhado de gente. O prédio no bairro da Luz eu já conhecia, já participei de seminário lá, já vi exposição temporária da Estação Pinacoteca. Mas nunca tinha ido ao espaço expositivo que trata do uso da construção pelo regime militar. O qualitativo “sensitiva” não se aplica a mim, mas só de imaginar entrar em lugares de tamanho impacto meu estômago revira um pouco. No entanto, eu entro (afinal, estudo História e enxergar a estupidez humana em sua face mais crua é uma espécie de rotina profissional). Em outras ocasiões, já entrei na cela onde Mandela ficou preso na ilha Robben e conheci um centro de detenção clandestino usado pela última ditadura argentina. Foram essas as primeiras lembranças que mobilizei na minha entrada no antigo DOPS.
    Eu tenho um pouco de mania de pensar comparativamente e, por isso, comparei o tempo todo o Memorial da Resistência com o Museo de la Memoria de Córdoba. Ontem o Memorial da Resistência estava cheio de alunos de escolas; quando fui, o Museo de la Memoria tinha um grande grupo de professores sentados no chão, concluindo o terceiro e, pelo que entendi, último encontro de docentes de escolas básicas ali. Em ambos, havia um ou outro contingente de público espontâneo (eu, entre eles). Não pedi monitoria em nenhum dos dois lugares, mas me fez falta no caso paulistano. Explico: no museu cordobês, as salas de exposição têm um texto introdutório, em geral bastante simples, sobre o material exposto. O que está exposto, porém, não precisa de muita explicação. Podem ser fotos de vítimas da ditadura como na fotografia que mostro acima; ou podem ser objetos pessoais de gente cuja família espera notícias até hoje. Ali, algumas salas me impactaram muito e pelos mais diferentes motivos. A primeira delas é onde há alguns livros com as histórias de vida das vítimas, e não apenas do sofrimento, do encarceramento e, é importante dizer, sem ocultar suas filiações partidárias e suas crenças políticas. Já no caso do Memorial da Resistência, eu sentia falta de alguém me contando histórias, para além da grande linha do tempo que nos apresenta, do discurso muito bem feito do ponto-de-vista historiográfico sobre a reconstituição do espaço e seus múltiplos usos no tempo. Aqui, a trilha sonora que enche o estreito corredor é composto por músicas de protesto que todos conhecemos; em Córdoba, não havia Walsh e sim um introspectivo silêncio. Quando a cela no pátio se enchia de voz, era uma narração feita por um ex-detento.

    O Memorial da Resistência apresenta muitos vazios. É bom ver como o lugar foi, mas não tive muita dimensão de o que aconteceu ali, só pelo meu caminhar. Vi algo parecido com o que os detentos que puderam tomar banho-de-sol viram, mas não vi quem os mandou prender, quem os torturou, matou ou desapareceu. Em Córdoba, essa foi outra seção que muito me impactou. Havia nomes, rostos, descrição de cargo e grau de envolvimento dos agentes de segurança naquilo que convencionaram chamar Proceso de Reorganización Nacional. Aqui, lembramos quem resistiu, quem sobreviveu e quem morreu, mas não é difícil notar que fingimos esquecer que este-ou-aquele esteve envolvido e que caminha impunemente por aí.

    Nos dois locais, as paredes diziam coisas, nomes, datas, siglas. Em São Paulo, um grupo refez algumas das marcas do período. Em Córdoba, possivelmente um visitante como eu, pouco tempo antes de minha estada ali, escreveu: “Videla puto”; no dia de minha visita fazia 12 dias que tinha morrido o ex-ditador, preso, condenado a prisão perpétua por crime contra a humanidade.

    Em suma, eu senti falta de poesia feita pelos anônimos, e falta de verdades que ainda não alcançamos. Não vi rostos, e apenas pude me colocar no lugar (é algo importante, mas a História depende um tanto de uma materialidade além da construção arquitetônica ou da mobilização da minha subjetividade). O discurso histórico está bem feito. A academia têm discutido o assunto já faz um bom tempo. O que falta no Memorial da Resistência na verdade não falta nele; falta na nossa forma de lidar com o tema.

    (um adendo: semana passada em um evento sobre patrimônio, pude conhecer parte do trabalho da organização argentina Memoria Abierta que com criações virtuais e pesquisa de campo reais reconstrói lugares, sem precisar erguer fisicamente monumentos. Com depoimentos e documentação arquivística, criaram um mapa de lugares de detenção provisória e centros clandestinos de detenção e a partir desse trabalho viabilizaram a busca por verdade e justiça a partir da memória e da história dos que viveram essas experiências.)
  • saídas

    gran pueblo argentino

    Com uma mochila de quase meu tamanho, recheada com metade roupa, metade livros, cadernos e textos, peguei o ônibus em direção à cidade de Córdoba. Ligeiramente desesperada por ter decidido me dar uma semana de folga no meio do semestre, procurei compensar fazendo análises de contos do Borges enquanto tomava chá e comia alfajor de maisena na casa de um desconhecido (que se foi de viagem e me deixou com a chave do apartamento). Em alguns momentos me vi super argentina. Entrei em um pequeno restaurante e pedi a comida típica das datas comemorativas: o locro, feito à base de milho. Por coincidência, o restaurante se chamava Ayrton e almocei escutando um menininho de uns doze anos me contando que o nome vinha da admiração do pai pelo Senna, e me narrando seus grandes feitos. Além do locro, enquanto rolava um festival de rock pelo Dia da Pátria, compartilhei mate com dois rapazes da cidade que esperavam ansiosos pelo show de Las Pelotas. A festa cívica deles é invejável. Considerando que em um espaço de 24 horas eu vi a Orquestra Sinfônica da Província de Santa Fe começando um concerto com o Hino Nacional (peguei gosto por esta versão de Mercedes Sosa) e terminando com Astor Piazzolla e fui a esse festival organizado pelo governo da Província de Córdoba, pareceu-me bastante diferente dos desfiles militares dos nossos Sete-de-setembros.

    nuevos amigos

    Percorri de trem os 700 quilômetros que separam Córdoba de Buenos Aires e, 21 horas depois, compartilhando assento com um senhor que lia Martín Fierro de José Hernandez, usando um anel em forma de índio na mão esquerda e carregando apenas um saco acinzentado como bagagem (sim, vi uma dimensão lendária de gaucho nesse homem), cheguei à Capital Federal. Quando organizei minha vinda à Argentina, pensava que não iria a Buenos Aires, por já ter passado duas semanas na cidade em 2011. Ganhei um ótimo motivo para voltar a ela: a vinda de uma amiga querida. A cidade não mudou quase nada – apesar do caos que se converteu por uma série de reformas urbanas que acontecem atualmente – mas me ensinou que os espaços são cheios de subjetividades nossas. A cidade não mudou, mas para mim foi como estar em outro lugar, totalmente distinto. Se não foi o exterior que sofreu alterações, algo muito profundo parece ter se passado no meu interior. Reencontrei lá, além da Viviane e seu delicioso creme de abóbora com queijo, as obras da Adriana Varejão que estavam expostas no Malba e um tempo para mim mesma. Sair de casa foi também uma possibilidade para reencontrar a possibilidade de silêncio e mergulhar nos meus próprios pensamentos como já não fazia havia muito tempo.

    pequeños pasos

    Outro dia assistimos ao filme Albergue espanhol que – não, não é de terror – conta a história de um guri francês que vai fazer intercâmbio na Espanha. Rimos com as comparações evidentes que há com as nossas vidas de estrangeiros, com a burocracia do processo, as dificuldades de adaptação e o estranhamento com a volta (que já pressentimos, embora não tenhamos vivido). No entanto, chegando da minha marcha a oeste e a leste (estou no centro do país), sentei-me para tomar chá e conversar com as pessoas e me dei conta de que muitas vezes o filme que trata da nossa vida é O anjo exterminador, do Buñuel. Ainda que termine o chá e as bolachas e ainda que uma série de outras coisas nos esperem em nossos quartos, por algum motivo desconhecido e com certa frequencia, não conseguimos sair de um mesmo ambiente onde começamos a conversar. O bom é que as similaridades param por aí: nunca estamos vestindo trajes de gala nem nos afogamos em tédio quando estamos juntos.

    en el cielo

    (As fotos são do Dia da Pátria em Córdoba)