• na amazônia legal

  • tambaquis, botos e sucuris

    Resolvi mexer no meu diário de viagem das últimas férias. Setembro parece estar há uma vida de distância e, por muitos meses, foi complexo pensar sobre os dias que passei naquele território que entendemos por Amazônia Legal. Saí de São Paulo rumo a Manaus, de lá peguei um barco e em cinco dias alcancei Belém do Pará. Uma semana ali para depois ir a São Luís do Maranhão.

    O motorista que me levou ao aeroporto era um tipo de resumo histórico do país em sua própria trajetória. De Sobradinho, na Bahia, Leonardo mudou para o Jardim Ângela depois de muito tempo sem emprego, herança do fim de obras colossais de grandes construtoras. L. andou por muitos cantos do país com esse trabalho, mas dizia-se feliz por agora estar com esposa e casal de filhos por perto. Porque, por mais que tenha gostado de Recife ou Guarapari (indicou-me os dois para conhecer). ele disse “a gente viaja porque precisa, senão não ia, não”. Virou motorista de aplicativo. O carro alugado custa R$ 1600 – por isso planeja talvez em breve financiar o próprio – e o aluguel no Ângela sai por R$ 1000. Talvez valha mesmo à pena vender a casa da Bahia, já que por lá só ficaram seu pai (com quem nem fala tanto) e a avó da esposa.


    Um grupo de urubus se movimentava no caminho que eu queria fazer, em Manaus. Um pouco assustada, dei uma grande volta para não precisar cruzar com eles. No entanto, quando quis ir embora, descobri que a preguiça é a mãe da coragem porque, sem vontade de refazer o caminho mais longo, segui entre as aves.


    As histórias que minha avó me contava de mamífero marinho virando homem, de sereia penteando seus cabelos nas margens do rio, dos pés virados da criatura que confundia os caçadores (eu mesma, miúda, molhando pé em poças e fazendo pegadas que levavam ao caminho errado). Quando vi um boto ao lado do barco, uma emoção tremenda tomou conta de mim e ainda penso em como aquele território e suas criaturas povoavam minha mente. Só que muito mais velha, o fascínio pela quantidade de tons de verde que eu podia enxergar com meus próprios olhos convivia com a secura da realidade dos fatos (as queimadas, a extração vegetal sem controle, os minérios, as invasões a terras indígenas).


    Leio o livro de Manuela Carneiro da Cunha sobre os indígenas no Brasil e penso como não é fortuito que a palavra “tupiniquim” tenha se tornado sinônimo de “brasileiro”. Os tupiniquins aliaram-se aos portugueses nas lutas contra os franceses que, por sua vez, fizeram aliança com os tupinambás. Há aí uma carga semântica baseada na história colonial. Não poderia ser sinônimo da nossa nacionalidade o nome de um grupo que se quis exterminar.


    Quatro noites e cinco dias no barco parece criar um tipo de sociedade com dinâmicas próprias.Esse conjunto de indivíduos tão distintos que uma hora formam um coletivo. Raimundo e sua rede azul crochetada com seu nome e uma âncora. Homem de postura ereta, cabelos brancos e poucas palavras, que por dois dias foi vizinho de rede daquela mulher que disse ao policial federal no posto de Óbidos que estava indo a Santarém para deixar de ser babá do filho. Conversamos um pouco no dia seguinte sobre isso.

    Foi ali em Santarém que subiram ao barco Maria e seu esposo, que me deixaram enternecida pela forma como se abraçavam, os dois idosos, a olhar o rio, suas paisagens. Tinham redes com estampas florais semelhantes em cores diferentes (o material era sintético, Maria me explicou que era mais fácil de carregar, as de algodão pesam mais) e, enquanto dormiam, ficavam juntos de modo que as redes pareciam formar uma cama de casal.

    No último dia, Maria estava inconsolável. Perdera o documento com dinheiro dentro. Encontrei no chão seu título de eleitor e devolvi a ela. Me disse: “é, o dinheiro levaram”. Eram R$ 85, mas logo completou que não tinha problema, dinheiro é o de menos, tinha a aposentadoria e a do marido, mas que o título a preocupava, teria que tirar outro, nem ia precisar mais, ano que vem completa 70 anos, mas ela fazia questão, quer votar, sim. Perguntei a seu esposo quando foi me agradecer pela devolução do título se precisavam do dinheiro para a passagem a Castanhal, destino final deles (sabia por conta de uma conversa com Maria, sobre seus trajetos e seus bisnetos no alto do catamarã). O homem me respondeu que não, que o dinheiro era “só para comida”. Às vezes ainda me dói no coração pensar nisso, no roubo e especialmente na hierarquia de valores de Maria.

    Na parte mais à frente do barco estavam essas crianças que a qualquer momento, de dia ou noite, cantariam louvores. Uma outra criança conversava com Bruno, o estudante de Geografia que instalou a rede a poucos metros da minha, sobre Pokémon e Dragonball. Uma torcedora do Paysandu esperava ansiosa o dia do jogo. Viam-se outras camisas, do Flamengo, do Palmeiras. Ouvi comentários sobre o fluxo de prostituição, as normas de convivência. Ali estavam turistas, homens de negócios (cujos negócios nunca saberemos bem quais são), os bêbados que choram terem sido abandonados por suas mulheres e aqueles que, nem tão bêbados assim, só levantaram e saíram de casa, com a facilidade que apenas um pai pode ter de deixar os dois filhos para lá por uns dias. Refugiados que a caminho de Belém só pensavam em como conseguir um passaporte e chegar à Europa.

    E das janelas do barco voavam sacolas plásticas com coisas que não mais interessavam à gente ali para que os ribeirinhos em canoas recolhessem. Nas margens dos igarapés, toras de madeiras aguardavam serem levados para longe da floresta e uma ou outra cruz se via por perto. Na segunda noite no barco, sonhei com duas sucuris; uma delas devorava um bezerro na minha frente.


    Livros que li nesta viagem:

    • Dois irmãos, Milton Hatoum
    • Índios no Brasil: História, direitos e cidadania, Manuela Carneiro da Cunha
    • Chove nos campos de Cachoeira, Dalcídio Jurandir