Em Bacurau, há movimentos interessantes na narrativa sobre o que seria o sujeito na História; não se trata de um único herói, uma pessoa dotada de uma posição quase iluminada que causará a transformação por sua boa vontade individual. Em determinado ponto do filme, fica claro que o sujeito histórico e narrativo é a própria cidade de quem o filme carrega o nome. Por isso, personagens tão bonitos, profundos, cheios de desejos são deixados de lado em seu desenvolvimento pelo bem maior do vilarejo. Suas histórias somem em mistério. O professor, as médicas, a prostituta, o motorista do caminhão-pipa, o pistoleiro. Anula-se o indivíduo pela história do coletivo.
A referência cívica do lugar não é a igreja ou a prefeitura. O ordenamento colonial de uma grande praça que abriga os poderes eclesiásticos e terrenos passa longe do vilarejo. A igreja de Bacurau está fechada e o prefeito eventualmente aparece por ali. Não conhecemos seus territórios, não passeamos por suas ruas, mas a câmera entra em algumas casas de moradores, na escola, no armazém e, aí sim o local que dá sentido à cidade: seu museu histórico. A religião dá espaço para um viver místico, mas é na reencenação da história que a redenção pode acontecer.
Apesar de o filme se passar em Pernambuco, a cidade que recebeu a equipe de filmagem, na verdade, está localizada no Rio Grande do Norte. É evidente que os diretores de Bacurau – Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – dominam uma infinidade de referências cinematográficas que podem ser esmiuçadas em diversas listas de gêneros e tradições do cinema brasileiro e estrangeiro. Mas também é evidente que o filme faz uma atualização do fenômeno do cangaço de fins do século XIX e de começos do século XX, pela chave do mitológico muito mais do que do histórico. Assim, o filme se passa no estado em que nasceu a figura mais relevante dentre os cangaceiros, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mas foi filmado no estado em que o grupo desse mesmo Virgulino sofreu sua primeira grande revés, na cidade de Mossoró. Se Bacurau pretende criar uma imagem do nordeste do Brasil, o cangaço é a substância escolhida para dar a liga em um ambiente de histórias tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, de uma identidade criada com relação ao outro – ao “Brasil do Sul” e aos estrangeiros, no caso do filme.
Ao retomar a dimensão de bandido social de Lampião pelas figuras de Lunga e de Pacote, o filme apaga as contradições das personagens e das relações de poder da cidade. O fazendeiro é morto sem que saibamos que tipo de relação tem com sua terra e seus trabalhadores – tema tão sensível no Brasil, de norte a sul, do século XVI ao XXI. Lunga é um degregado bem-quisto e, o prefeito, apenas mais um dos forasteiros sociopatas que estragam a harmonia do lugar (o máximo de tensão entre seus habitantes acontece quando Domingas, embriagada, berra contra a vizinha recém-falecida). A violência em Bacurau é reativa. Não é revolucionária.
Assisti ao filme em uma segunda-feira à noite, num shopping de Manaus. Acho que dizer isso faz toda a diferença. Não tive uma sala lotada nem manifestações políticas na sessão. Do público, tudo que ouvi foi uma mulher atrás de mim perguntando se os trilheiros não iam pagar a mercadoria do armazém e uma mulher, ao meu lado, dizendo a seu acompanhante “filme é longo, né?”. Passei aquela semana vendo pessoas comparando a obra de Mendonça e Dornelles com a filmografia de Tarantino. Claro que a comparação podia ser também feita ao Cinema Novo (embora eu, pessoalmente, ache o cangaceiro de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol muito menos mitológico do que Lunga). E então foi só por esses dias que eu entendi: o diálogo que eu precisava fazer não era com um filme clássico ou com um grande diretor dos Estados Unidos; a obra que mais conversava com a minha percepção de Bacurau era, na verdade, uma série feita para uma plataforma de streaming: Bandidos na TV.
As cenas de violência em Bacurau são intensas, viscerais. Mas a história do apresentador do Canal Livre, que passava nas televisões amazonenses, me fez perceber o porquê de todo aquele sangue e violência não causar tanto impacto aos meus colegas de sessão. Dividida em sete episódios, Bandidos na TV escancara imagens de mortes violentas que apareciam em pleno horário de almoço. Tampouco é revolucionária a violência na série documental: é uma espécie de mistura entre um caos completo e um ciclo infinito de vinganças.
Se simplificarmos ao máximo, um bandido seria uma pessoa que coloca o seu bem acima das normas de boa convivência de sua comunidade. Por essa definição, em Bacurau é difícil dizer quem seria bandido, enquanto, por outro lado, em Bandidos na TV é difícil dizer quem não age à margem da lei (dos ditos bandidos às forças policiais). Se o grupo de Lampião foi decapitado pela volante quando capturado, em Bacurau são esses herdeiros distantes do cangaço que infligem a decapitação a seus inimigos. Mas – e talvez tenha sido isso que tenha me chamado tanto a atenção pelo lugar em que eu assisti ao filme – em Manaus, no ano de 2017, os esquartejados eram os internos da penitenciária em uma das batalhas de uma guerra transnacional pelo tráfico de drogas. Em Bacurau, o uso de um forte psicotrópico é do cotidiano e a segurança de perpetuação da comunidade.
Bacurau é a utopia e, se queremos associá-lo à tradição tropicalista, fornece essa utopia através da catarse. Mas, na ordem do real, é muito mais plausível que um prefeito envolvido em graves crimes sexuais seja saudado em comícios por uma parcela do eleitorado que o defende do que vejamos a população toda se entocar em protesto. Na ordem do real, afinal, vivemos em um Estado altamente militarizado que foca na penalização: através da justiça, enchendo penitenciárias de potenciais novas vítimas de massacres, e através da força pública com execuções sumárias de indivíduos. Enquanto isso, alguém ganha alguma coisa com essa tragédia – mesmo que não saibamos muito bem quem.