Este texto é sobre RuPaul’s Drag Race
Sempre que concorrentes de RuPaul’s Drag Race contam sobre os constrangimentos que vivenciaram em seus colégios ou pequenas cidades, eu lembro do terror psicológico que foi atravessar o Ensino Médio. Crescer estava se tornando um fardo e me fazia acreditar que minha vida era parecida a de personagens dos meus filmes favoritos. Como Carrie, a Estranha, para ser mais exata. Só que se essa fase escolar beirava o insuportável, com personagens detestáveis que não pareceriam ter pudor de despejar-me um balde de sangue de porco se tivessem oportunidade, foi por volta dos meus nove anos que criei a primeira situação em que a transformação drag fez sentido para mim.
Quando era criança, eu me vestia com roupas que podiam ser rasgadas, manchadas, sujas de tinta e de toda sorte de meleca. Eu tinha uma estranha crença de que os joelhos eram feitos para estarem sempre ralados, porque não me lembro de ter os meus plenamente cicatrizados durante a infância. Mas, um dia, vindo de lugar nenhum, coloquei um lenço no pescoço, vesti os óculos escuros de alguma tia e encontrei um belo relógio que mal cabia no meu punho. Atributos de real elegância para a jovem Bárbara. Vendo-me sem nada para fazer, minha avó me perguntou:
– Bárbara, quer ir ao açougue comigo?
Como resposta, ela obteve um:
– Eu não sou a Bárbara. Eu sou a Cátia.
Sem parecer estranhar a supressão ou a adição de identidades da própria neta, minha avó refez a pergunta:
– Cátia, você quer ir ao açougue comigo?
Cátia prontamente aceitou, porque, afinal de contas, vestida tão garbosamente não poderia se furtar da chance de ver e ser vista, ainda que somente por um quarteirão de distância que separava a casa do açougue. Naquela época, o açougueiro era o Aguinaldo, que convencionamos chamar apenas de Gui, e por quem eu tinha bastante afeto, já que ele me deixava cortar fígado de boi que comeria no almoço. Chegando ao açougue, o Gui logo disse:
– Oi, Bárbara!
– Eu não sou a Bárbara. Eu sou a Cátia, sou prima da Bárbara e vim do interior passar as férias aqui.
O Aguinaldo, também não estranhando a mudança de atitude que um lenço e uns óculos escuros faziam na minha personalidade, aproveitou a situação e logo me criou um apelido: Catita. Algumas outras vezes fui ao açougue, intercalando entre as personagens e dizendo, na ausência de acessórios que Catita tinha voltado para o interior, ou na presença deles que mais uma vez vinha visitar minha prima da cidade grande.
Talvez o que estivesse por trás do surgimento de Catita era um cansaço que até hoje tenho de ter que ser eu o tempo todo. Muitos dos meus amigos do Ensino Médio participavam do grupo de teatro do colégio e catalisavam suas fadigas e introversões em peças apresentadas no final do ano. A galera que participa de RuPaul’s Drag Race por vezes tem em suas personalidades drags a desenvoltura e expressividade que não encontram longe das maquiagens e acessórios. A criação de identidades ainda é um processo que a gente não entende totalmente (porque é ao mesmo tempo psicológico e social), mas com o qual podemos brincar e levar a sério. Isso diz Bárbara. Mas diria Cátia também.
Esse texto saiu primeiro na newsletter No episódio anterior