pitoresco: artistas, artesãos e trabalhadores

O bordado aqui é o ponto de partida, mas há muitas outras coisas entrelaçadas no mundo da arte. De onde vem o prestígio da arte sobre o artesanato ou por que os trabalhos manuais são tão relacionados ao feminino? Bruna Kater fala da distinção do artístico sobre o artesanal e como a revalorização do bordado a levou para uma discussão mais ampla sobre a produção manual.


Transcrição do episódio

Música de abertura

Bárbara: Eu moro sozinha e eu sinto a falta de ter uma caixa de costura. Um conjunto de agulhas, linhas diversas, quem sabe até uma tesourinha. De pouco em pouco, eu me lembro de alguma ausência entre os utensílios de cozinha. Eu também queria uma caixa completa de ferramentas, mas esses três itens já tem dado conta da minha demanda cotidiana. Mas eu continuo sentindo falta da caixa de costura. Por isso, aproveitei uma ida à casa da minha avó para usar os alfinetes dela e o restante de sua caixa de costura para arrumar a barra de uma calça nova.

Sentada no quintal, aproveitando um solzinho de inverno, eu realizei esse trabalho. Um trabalho doméstico, ensinado a mim por uma mulher. A filha dessa mulher – que por acaso é minha mãe – desenrolava lãs e barbantes para preencher painéis de tapeçaria ou fazer filas de crochê no seu tempo livre. A avó da minha mãe, a minha bisavó, fazia renda nas toalhas de mesa e nos panos de prato. 

Há um emaranhado de assuntos aqui. Nós quatro, da vó Anna até mim, usamos as agulhas de forma amadora, para ocupar o tempo na frente da tv ou para melhorar uma peça de roupa. Dentro do mesmo novelo estão o conhecimento transmitido de uma geração para outra pelas mulheres da família, esse trabalho visto como um não-trabalho, o valor estético desses artefatos produzidos ou incrementados pelas nossas mãos. Mas o que será que tudo isso tem a ver com o mundo da arte?

Meu nome é Bárbara Carneiro e este daqui é o Pitoresco.

Aumenta o volume da música e ela termina

Bárbara: Madalena dos Santos e Regina Gomide viveram mais ou menos na mesma época. Madalena nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, quando a Regina tinha 22 anos e estudava na Escola de Belas Artes e de Artes Decorativas de Genebra, na Suíça. Enquanto Madalena vivia seu primeiro ano de vida, a Regina se casou com o artista John Graz, um suíço, e voltou ao Brasil com ele. Madalena também se casou, mas aos 33 anos, com um homem de sobrenome Reinbolt. Luiz Augusto não era artista, mas sim caseiro da residência onde Madalena era empregada doméstica.

Regina e Madalena tinham uma coisa em comum nas suas trajetórias: a tapeçaria. Nos anos em que estudou em Genebra, Regina desenvolveu seu trabalho artístico de uma maneira que não era habitual no seu país de origem. No Brasil de começos do século XX, as artes aplicadas estavam mais próximas do artesanato do que das artes superiores como pintura, escultura e arquitetura. Estar próxima ao artesanal era, em si, um demérito num mundo que enxergava (ou ainda enxerga?) nesses trabalhos manuais uma prática pouco relacionada ao exercício intelectual. Ainda assim, Regina teve uma carreira memorável, principalmente em parceria com o marido, que era quem supostamente planejava – logo, usava o intelecto – os projetos de decoração das casas de elite paulistana. Segundo Ana Paula Cavalcanti Simioni:

a dupla John-Regina Graz havia atuado, decisivamente, no sentido da implementação de um novo gosto e de uma nova prática: a arte realizar-se-ia não apenas nos distantes e consagrados espaços dos museus e galerias, mas também por meio daqueles objetos cotidianos e domésticos. Pode-se afirmar que, nesse sentido, praticaram uma concepção de arte bastante original para o contexto brasileiro, a qual transcendia as esferas institucionalizadas.”

Apesar de os críticos de sua época não entenderem a produção de Regina como artística por seus usos aplicados na decoração de casas, ela montou nos anos 1940 uma indústria de tapetes com seu próprio nome e levou as tendências construtivas da arte para suas peças que habitavam os espaços domésticos.

Madalena, no entanto, não abriu indústria nenhuma. Foi mandada embora de uma das casas de elite em que trabalhava – uma casa de artistas – por se preocupar demasiado com seus desenhos. Crescida na fazenda dos pais, ela aprendeu a bordar com a mãe, sobre quem falou em uma entrevista:

Minha mãe fazia loiça de barro, fazia renda, fazia cobertor, tocava algodão com a roda e fazia roupa para a casa inteira.”

Nos anos 1950, Madalena desenvolveu trabalhos com tinta, mas na década seguinte migrou para as linhas e para as agulhas. Seus “quadros de lã” (como ela chamava) eram criados com 154 agulhas geralmente em fundos de estopa. Ali, ela representava cenas rurais de uma fartura que vivera na época da fazenda de seu pai no interior baiano.

Mas o fazer de Madalena ocupa espaços segmentados da arte. A princípio, a dúvida se é artista ou artesã. Se for artista, é possível não associá-la a um qualitativo que a chame de ingênua? Pleitear para Madalena um lugar de artista é o esforço dos pesquisadores Eliane Cristina da Silva e Delton Aparecido Felipe que sobre o assunto escreveram:

Por se tratar de uma mulher-negra-tapeceira, podemos perceber uma tríplice invisibilidade social, de gênero, raça e arte, já que o bordado é visto como uma arte menor, por ser historicamente associado a um fazer doméstico das mulheres. Assim, enxergar Madalena como artista é ir contra paradigmas estabelecidos, proporcionando fala e representatividade a artistas negros e populares.”

Sem espaço para si nesse sistema enquanto vivia, Madalena morreu como empregada doméstica, não sendo capaz de sustentar-se com os trabalhos artísticos que desenvolvia.

interlúdio

Bárbara: Para continuar nesse assunto, eu convidei a Bruna Kater, que fez uma pesquisa sobre a atual valorização do fazer artesanal, que ela apresentou para conclusão do curso de Publicidade. O trabalho chama-se Bordado à mão: a revalorização do mercado artesanal e parte justamente dessa técnica para entender não só a sua valorização atual como também a história de sua desvalorização.

Bruna Kater: Eu sou a Bruna. Eu sempre fui uma pessoa muito ligada a experimentações artísticas, assim, eu desenho desde criança. Eu sou aquela pessoa que não parou de desenhar na adolescência, sabe? E mais tarde eu encontrei nisso uma profissão. Então, eu sou designer e ilustradora, mas eu sou formada em Publicidade. Só que no meio do curso, eu descobri que não gostava tanto de Publicidade, eu não me identificava mais tanto. E aí a minha pesquisa de TCC foi Bordado à mão: a revalorização do mercado artesanal, numa tentativa de sair um pouco da Publicidade e pensar comunicação de uma forma mais abrangente e a relação com a arte.

Bárbara: E como que vem a ideia de fazer o seu TCC? Como você chegou ao objeto bordado?

Bruna: Uhum. Então, eu sempre gostei muito de artes manuais, né? Eu conheci o bordado em 2016 num curso e de cara eu me apaixonei e desde então eu já experimentei bastante com essas artes manuais. Eu faço cerâmica, eu gosto de pintar, né, que eu considero também uma arte manual, eu gosto de publicações artesanais, de fazer carimbos, enfim. E foi bem nessa época que eu tava experimentando bastante, fazendo vários cursos que eu tinha que escolher meu tema de TCC. Tava no fim da graduação. E, enfim, como eu falei, eu não me identificava muito mais com a Publicidade. Na verdade, nunca me identifiquei.

E aí um dia eu tava fazendo outro curso de bordado e num estalo, assim, eu tive a ideia de investigar uma coisa que eu tava notando que era esse processo de revalorização do artesanal que eu via muito os instagrams pipocando com bordadeiros, pessoas que fazem cerâmica, e feirinhas também independentes. Eu notei bastante isso e pensei que seria uma oportunidade legal também de buscar, de saber mais sobre isso. E também uma coisa importante que me fez ter certeza que era esse tema que eu queria é que eu também teria oportunidade de produzir o meu livro mesmo né da monografia, o livro físico.

Desde o começo, eu tinha essa intenção de fazer um livro com as minhas próprias mãos assim e calhou também de eu estar fazendo um outro curso (eu sou a doida do curso, (riso))… Eu tava fazendo um curso que chamava “Práticas tipográficas do livro artesanal” com a Fernanda Brito e a Silvia Nastaria. A Silvia é fundadora da Editora Quelônio, não sei se você conhece, que é uma editora independente de publicações artesanais, bem legal. E aí no fim desse curso tinha um projeto de uma publicação que cada um ia fazer. E aí eu já, já tinha assim… eu entrei no curso pensando que ia ser a minha monografia, né?

E aí foi realmente o que eu fiz, depois da parte da pesquisa e de escrever, eu separei mais ou menos um tempo parecido, sabe?, porque teve para mim uma importância semelhante a parte prática de fazer o livro. Então eu fui atrás de tecido, aí eu bordei o tecido que ia na capa né. O livro tem também algumas páginas em algodão cru, com tipos móveis impressos, eu fiz, enfim, o processo de colagem, de montagem do livro mesmo. Foi muito importante fechar a pesquisa com essa prática. Eu senti assim que a minha intenção era homenagear o fazer à mão. Eu acho que fechou bem e foi importante para concluir essa fase.

Bárbara: Muito bom. Você tava falando de como você foi percebendo né que esse fazer artesanal nas redes sociais e em feiras… não tem nenhuma relação familiar, assim, de de você começar a se interessar por bordado através da sua família? Porque às vezes é algo um pouco comum, de ser uma prática um pouco feminilizada…

Bruna: Sim. Comigo não teve uma referência assim em artes manuais. A minha avó paterna pintava e eu sinto que ela foi uma referência para mim para que eu gostasse de artes em geral assim. Eu e minha irmã, a gente. Eu acho que a minha avó foi bem bem importante para a gente se interessar por artes no geral. Mas, artes manuais, bordado, realmente eu não, na minha família, não veio daí, sabe? Não veio da minha família. Eu acho que foi mais de redes sociais. E eu tenho reparado assim que bastante, bastante gente tem procurado essas artes manuais por conta das redes sociais mesmo.

É comum mesmo quando vem da família, mas eu também tenho visto um movimento das redes, sabe? Era uma coisa até que eu me perguntava, assim, parece um momento meio anacrônico de ver as artes manuais tendo essa revitalizada em um ambiente que não tem nada de manual. Não é nada tátil. E daí na minha pesquisa, assim, eu usei bastante de uma especialista em tendências que chama Lidewij Edelkoorte. E ela tem uma fala bem interessante sobre isso que é quanto mais virtual a sociedade caminha para ser mais vontade de ser tátil a gente tem, de tatialidade mesmo.

Parece bem paradoxal, né? Mas acho que faz sentido se pensar dessa forma que, sei lá, acho que às vezes a gente sente falta de… sei lá, com esse instagram, né? esse mundo todo com, enfim, com a velocidade que tem a gente parar um pouco e a gente aprender uma técnica que demanda tempo e você sente, né? Você tá fazendo e tá sentindo ali o tecido, a linha, a agulha, eu acho que faz sentido.

Bárbara: E acho que tem uma vantagem também de ser… pensando um pouco numa internet de antigamente assim, mas de um dos propósitos da internet de ser um lugar de troca, né? Então você não teve pessoalmente quem sentasse com você e fizesse um bordado, mas você foi capaz de aprender, trocar com outras pessoas ou aprender a partir de pessoas que moram longe ou que não estão sentadas do seu lado como fazer, como solucionar os problemas que às vezes a prática artesanal tem também, né? E gerações passadas não tinham né… Se não estivessem em um espaço físico com alguém que entendesse muito do assunto o interesse podia não se desenvolver, não ter como se desenvolver também, né?

Bruna: Total. A primeira, o primeiro contato que eu tive com bordado foi… assim, o contato de bordar foi nesse curso em 2016, mas acho que o primeiro contato foi com o Clube do Bordado. Não sei se você conhece. Por si só já é uma comunidade. Acho que são umas cinco meninas, cinco mulheres que ensinam e fazem vários tipos de conteúdos sobre bordado, que foi um dos perfis que eu analisei na minha pesquisa, porque é um dos perfis com mais seguidores no Brasil sobre bordado. Então, e elas tem um grupo de “bordetes”, assim, eu acho que realmente é isso, sabe? Cria uma comunidade, né?

interlúdio

Bruna: O que eu trouxe da pesquisa, assim, é que a relação do artesanato com o gênero feminino foi um dos pontos que eu elenquei como evidências do processo de desvalorização do artesanato. Porque nem sem o artesanato foi visto como uma produção inferior, até porque antes da Revolução Industrial ele era a única forma de produção. Na Idade Média, o artesanato teve tempos gloriosos.

E eu acho que uma coisa importante nessa discussão é pensar no resultado inclusive da Revolução Industrial que foi a divisão entre o pensar e o fazer, que nesse período de Revolução Industrial, com a divisão de tarefas e depois com a maquinofatura ficou bem dividido assim esses dois âmbitos, né? Como se o cérebro criasse e as mãos apenas executassem, quando na verdade não é bem assim. As coisas estão bem mais juntas do que parece.

E também assim na pesquisa eu vi que foi bem nessa época que surgiram as academias de arte e lá tinha os estudos de modelo vivo, e era onde se ensinavam as artes ditas intelectuais, que era a pintura, a escultura e a arquitetura. Só que as mulheres não podiam frequentar, então para as mulheres restava apenas as artes aplicadas que era o que era visto que elas eram aptas a fazer. E as artes aplicadas eram justamente as artes manuais, a cerâmica, aquarela até, as artes têxteis principalmente.

Aí meio que foi criado esse ciclo vicioso né que as mulheres eram tidas como seres intelectualmente inferiores, então elas eram excluídas das academias e elas eram vistos apenas capazes de produzir aquela arte feminina né que era o artesanato. E aí, aos poucos essas artes foram feminilizadas, assim, é um termo da Ana Paula Simioni, né? É mais natural um homem se posicionar como um artista, sabe? Até meio que inconscientemente como uma distinção, né?

E uma coisa também que dá para pensar sobre esse assunto assim é que essas artes feminizadas, elas são mais decorativas, mais restritas ao ambiente doméstico, elas são menores e mais perecíveis também. É bem diferente pensar num edifício e num bordado feito numa almofada por exemplo. Até escolas que eram mais progressistas, assim, tipo a Bauhaus, as mulheres eram desestimuladas a frequentar os ateliês de pintura, elas ficavam mais nos ateliês têxteis mesmo. Eu sinto que tudo que se aproxima assim da feminilidade né mesmo que não tenha – óbvio as coisas são bem arbitrárias – é visto de uma forma negativa. 

interlúdio

Eu lembrei de um trecho do Culturas Híbridas do Canclini, que foi um livro que eu usei muito na minha pesquisa, né? E tem uma hora que ele fala que onde havia pintores e músicos há designers e DJs.  E aí ele usa isso como exemplo de um processo de hibridação, que é um termo dele que seria basicamente misturas assim. Misturas de culturas. Então, uma cultura A e uma cultura B se misturam numa cultura C, só que a cultura A e a cultura B também são resultados de outras misturas.

Eu vejo muito o design como um derivado da relação da arte com a tecnologia e tem muita gente né que fala que design e arte não tem muito a ver, porque o design é mais objetivo e tem o propósito que muitas vezes é mercadológico, né? Mas aí eu acho que então um pouco essa questão de romantização da arte, sabe? Que a gente vê a arte com uma coisa completamente descolada do mundo, o artista como um cara que tem um dom, um talento, que recebe a inspiração, cria coisas inéditas do nada assim sem ver nada… e não é bem assim, né? Mesmo no Renascimento as pinturas eram encomendadas, né? O Toulouse-Lautrec é um cara visto como um artista, mas o trabalho dele se assemelha muito mais até ao design. Ele fazia cartazes, capas de livro, capa de revista.

Assim, particularmente, eu me vejo com uma dificuldade de me entender como artista, sabe? Mas eu acho que é muito por conta dessa idealização da arte como se fosse mesmo um nome que você tem que merecer muito para você receber o título de artista. Mas é uma coisa que eu tenho trabalhado em mim, assim, porque eu não acho que é uma visão saudável.

Bárbara: Pensando nessa romantização da figura do artista, isso também acaba… você deixa de considerar o trabalho do artista um trabalho, né? Porque vira uma inspiração divina, um gênio, é como se não existisse uma prática cotidiana, que existe. Para um artista ter uma técnica e tal em geral ele estuda muito. Mesmo que seja não um estudo formal, mas uma experimentação própria. Existe uma inspiração, mas existe também muito trabalho por trás, né? E daí se a gente romantiza também a arte, a gente ignora que existe um mercado de arte né a gente ignora que existem instituições por trás disso, conferindo valores… 

Bruna: E é isso. A arte, o mundo da arte, tem ali os seus códigos, a gente aprende, os artistas, os críticos, os historiadores, enfim, todo mundo ali do mundo da arte aprende aqueles códigos e, enfim, reproduz ali, não é algo totalmente descolado da realidade. Eu acho que isso do valor mercadológico também, tenho essa impressão de que a arte não pode se misturar com o mercado, né? Só que assim no mundo que a gente vive o que que não tem esse valor, né?

Até o Canclini fala assim que especialmente depois da Modernidade, a arte ficou totalmente na lógica do mercado, né? Prova disso é que nem sempre as obras mais caras são as mais inovadoras, que tem os valores estéticos mais apurados, enfim… às vezes tem outras questões ali. Questões mercadológicas. Inclusive é uma coisa que diferencia, que sustenta essa diferenciação entre arte e artesanato. Artesanato é muito visto como uma coisa utilitária, mercadológica, como se fosse o meio de sobrevivência, ali. Só que, pô, a arte não é tão diferente disso, né?

Bárbara: E é engraçado que existe um discurso até que a gente escuta bastante de que “isso até eu faria”. Ao mesmo tempo é engraçado porque, de você olhar uma obra de arte e falar “isso eu faria, isso meu filho de 6 anos faria”. Ou então talvez todos nós temos um potencial artístico, né? Eu acho que é muito mais importante pegar esse tipo de comentário e repensar por que que a gente não tá produzindo coisas artesanalmente, né, elaborando nossas subjetividades, sei lá, em produções de desenhos, de gravura. Por que a gente tá muitas vezes em trabalhos que não dão uma satisfação e pensa “isso eu faria!”. Que gostoso se todo mundo pudesse fazer sem que houvesse essa separação do ser artista com ser uma pessoa no mundo, né?

Bruna: Sim, nossa, total! Esse comentário de “isso aí eu faria ou o meu filho” é realmente muito mal aproveitado. Podia vir com essa interpretação, né? Tá bom então vamos fazer! (risos)

Bárbara: (risos) Vou pegar meu filho de 6 anos e fazer uma obra de arte, pronto. 

Bruna: Sim! (risos)

Bárbara: Nem que não seja para estar exposto, mas por uma questão de “por que é tão legal pra algumas pessoas fazerem isso?”, né?

Bruna: Sim.

Bárbara: Eu sou meio contra esse discurso, mas eu acho que esse discurso fala muito, porque eu acho que tem muito mais gente que queria experimentar o fazer artístico se ele não parecesse uma coisa extremamente elitista, sabe?

Bruna: Sim, com certeza.

Bárbara: E aí eu acho que o artesanal é um caminho um pouco para esta fruição também.

Bruna: Tem uma fala da mestre Isabel, que é uma ceramista do Vale do Jequitinhonha, que é a fala que abre minha pesquisa, assim, que é uma fala muito interessante, meio confusa de… porque perguntaram a ela se ela é artista ou artesã. Aí ela fica confusa, não sabe muito a diferença que existe porque realmente a diferença é confusa, né? E aí ela fala que “artista, artesã, só falta falar ã”. E é bem isso, assim, é uma divisão bem arbitrária. Enfim, eu acho que existe esse risco infelizmente, mas eu acho que é importante isso, sabe? De ter essas discussões de questionar por que uma coisa é arte e outra coisa é artesanato e se esses termos estão distantes quanto se pensa.

Bárbara: Às vezes eu fico pensando… às vezes por causa desse episódio (risos), fiquei pensando, de como certos artesãos nessa valorização do artesanato podem sentir que estão hackeando o sistema, digamos assim. E aí, um outro tipo de produção acaba entrando muito numa chave naïf, sabe?

Bruna: Sim, é, esse termo é bem estranho mesmo.

Bárbara: De “essa pessoa é mais ingênua, não tem conhecimento, é uma coisa mais simples”. E aí eu acho que é preciso ter um certo cuidado também para não ficar reproduzindo as desigualdades que já existem, sabe? De no mundo da arte e no mundo real, digamos assim, de que lugares essas peças ocupam, né? Se é para valorizar o artesanato, eu acho que é pra valorizar em sim, para recuperar um… não sei se uma essência, assim, mas um contato, um fazer artesanal que não seja que não seja de criar essa distinção entre um que é mais artista e um que é mais artesão. Tomar cuidado para não criar essas dinâmicas dentro do próprio artesanato também.

Bruna: Sim. É, com certeza. Eu acho que a chave aí não é achar características de um artesanato que elevem ele à categoria de arte ou mais artístico, porque isso seria justificar essa hierarquia, né? Eu acho que a coisa é questionar essa divisão, tomando esse cuidado de entender os contextos, enfim.

interlúdio

Bárbara: Em Londres, no final do século XIX, Karl Marx penhorava seu casaco para poder ter dinheiro para escrever suas obras. Ele nem sempre com dinheiro para sustentar a família enquanto precisava debruçar-se sobre seus objetos de estudo, e por isso seu objeto de vestuário ia para a casa de penhores. Quando conseguia dinheiro com as obras que escrevia, comprava de volta a peça de roupa que o protegia do inverno londrino.

Foi nessa mesma cidade, e nesse mesmo período histórico, que o artista William Morris e o filósofo John Ruskin criaram os paradigmas do movimento Arts and Crafts (ou, traduzindo, artes e artesanatos). Enquanto Marx escrevia criticamente sobre a alienação do trabalhador perante as mercadorias que produzia, essas pessoas se perguntavam como a arte poderia ter sentido nesse mundo industrial que emergia. 

O avanço da produção em fábricas e o desmantelamento da produção coletiva e artesanal curiosamente não parecem afastados de outro processo: o de transformação do artista em alguém muito especial. Um exemplo disso, voltando para o Brasil um pouquinho, são as obras das igrejas barrocas de Minas Gerais. A gente escuta muito sobre as decorações feitas por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mas nem sempre recebemos o contexto de que essa produção não era fruto de um homem genial dotado de muito talento. Tratava-se de um trabalho coletivo. Repito: Um trabalho. E coletivo.

A arte no movimento Arts and Crafts não seria somente movida pela estética. Seus idealizadores pensaram que a arte não deveria servir apenas à beleza, mas ela deveria sim ser uma forma de expressão. A arte teria aspectos morais ou sociais e, assim, responderia às necessidades de seu tempo, deixando de ser algo exclusivo de uma classe social que busca a distinção pelo seu gosto. A beleza não deveria ser um prazer para sempre, mas sim um prazer para todos. O que é belo não estaria só em peças determinadas, que cumpriam regras e habitavam espaços delimitados. O belo estaria também no artesanal, no manufaturado, estaria na pessoa que produzisse e não num entorno que valide ou rechace essa produção.

Pelo pensamento de Morris e Ruskin naqueles finais do século XIX, os trabalhadores deveriam ser artistas e os artistas serem trabalhadores. Regina Gomide não era apenas uma artista, era também trabalhadora, e Madalena Santos não era apenas trabalhadora, era também artista. E todas as produções dessas pessoas não surgem magicamente de suas cabeças. Suas mãos executam obras viabilizadas por trabalhos de muitas outras pessoas, algumas delas inclusive em fábricas, indústrias, produzindo agulhas, fios, telas, molduras. 

Enquanto eu pesquisava os temas desse episódio, a Mila me mandou um poema de Adelaide Ivánova que está em seu livro “Chifre”. Eu gostaria de encerrar então com as palavras da Ivi:

todo livro de poemas tem um poema sobre / o que é o poema e esse / é o meu // o poema é um produto do trabalho humano / que se escreve se fala se canta se olha ou se lê / para ser feito precisa de uma pessoa-poeta / e de coisas produzidas por outras pessoas / (que talvez também sejam poetas / quando não estão produzindo as coisas / que a poeta precisa pra produzir poemas) / papel lápis computador mesa cadeira livros internet eletricidade / esses são os meios de produção do poema / é o que a poeta precisa pra escrever // o poema não existe fora do corpo da poeta / e a poeta precisa viver estar viva e ter / entre outras coisas como todas as outras pessoas / onde morar o que vestir o que beber e o que comer / precisa de tempo livre pra si e pros seus / pra dormir / pra se desenvolver culturalmente / e pra fazer trabalho de base / (isso é Frigga Haug) / o poema não é a coisa mais importante / do mundo nem é a menos importante / ele é o que existe / porque existem pessoas que querem ler poemas quando não houver mais leitores / de poemas não existirá mais poesia é simples / não precisamos nos preocupar tanto / cavoucando nossa importância somos trabalhadoras / como todas as outras / respondemos como respondem / marceneiras entregadores astrônomas enfermeiras / a um encargo social / (isso é Maiakovski) / respondemos a uma necessidade / coletiva que pode vir “do estômago ou da fantasia” / (isso é a a página 1 d’O Capital)”

interlúdio

Esse foi mais um episódio de Pitoresco. Contamos com a participação de Bruna Kater. Os trabalhos de pesquisa, roteiro, edição e publicação foram feitos por mim mesma, Bárbara Carneiro. Até mais.


Referências

adelaide ivánova. chifre. juiz de fora: edições macondo, 2021.

bruna kater. bordado à mão: revalorização do trabalho artesanal. (textoprojeto)

néstor garcía canclini. culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. são paulo: edusp, 2013.

lidewij edelkoort. crafts: on scale, pace and sustainability. in: the future is handmade: the survival and innovation of crafts, 2003, prince claus fund for culture and development, amsterdam. edição de malu halasa e els van der plas.

ana paula cavalcanti simioni. regina gomide graz: modernismo, arte têxtil e relações de gênero no brasil. in: revista do instituto de estudos brasileiros, são paulo, v. 45, pp. 87-106, 2007.

eliane cristina da silva & delton aparecido felipe. tapeçarias de madalena dos santos reinbolt: identificação de arte e artista popular. in: conhecer: debate entre o público e o privado, 9(23), pp. 94–123, 2019

oscar lovell triggs. arts and crafts movement. nova york, parkstone international.

peter stallybrass. o casaco de marx: roupas, memória, dor. editora autêntica, 2004.

madalena dos santos reinbolt. museu afrobrasil.

catálogo da exposição transbordar. sesc são paulo, 2020.

regina gomide graz. enciclopedia itaú cultural.


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