A morte foi uma das presenças mais constantes na minha viagem ao México. Ela surgia em conversas sobre o corpo encontrado na cidade vizinha, nos números alarmantes de feminicídios, nas lembranças recentes do terremoto do mês anterior e na ansiedade pela maior festa do país. Como eu tenho uma relação muito conflituosa com esse que é o mais natural dos desígnios dos seres vivos, já sabia – desde 2016, quando o tema da edição da Capitolina foi Aquilo que não deve ser nomeado e propus uma pauta sobre celebrar a morte – que conhecer o México seria uma maneira de conhecer formas diferentes de viver o finamento.
No dia 01 de novembro, fui ao cemitério. Tal qual no panteão de Oaxaca, ali, no Distrito Federal, o terremoto também deu a alguns túmulos uma bizarra aparência, porque fendas no chão davam a sensação de abertura. Com bom humor, lembrei-me de quando eu era criança e passava bons trajetos cantando com a minha avó que quando o relógio batia uma, toas as caveiras saíam da tumba. Em San Cristóbal, descobri que crianças mexicanas tem sua própria versão dessa música.
Foi nesse mesmo cemitério que um túmulo cheio de flores me chamou a atenção. Como não tinha sua face em uma alameda, meti-me por entre outros túmulos para chegar ali. Conforme me aproximei, um barulho esquisito se fez ouvir e eu logo pensei: “Ah, pronto! Me toca ter que lidar com o inframundo bem agora!”. Quando cheguei ao túmulo, vi um vulto descendo pela árvore atrás dele. No momento seguinte, um ágil esquilo arrancou do arranjo uma flor laranja, uma cempazuchitl de cor bem vibrante que ilumina o caminho dos mortos a seus túmulos e oferendas, e começou a comê-la. Foi num átimo que se lançou com a flor de volta à árvore, o que deu uma curiosa visão de ascensão das pétalas destroçadas.
No dia 02 de novembro, juntei-me a um casal composto por um francês e uma vietnamita e fomos para San Andrés de Mixquic, um vilarejo localizado no sudeste do Distrito Federal. Ali, pessoas se reúnem nos túmulos de seus mortos, enfeitam as tumbas, ascendem velas. Perguntei a um homem se aquele que eu via na foto era seu pai e ele me contou que ali estavam não apenas o pai, como sua mãe e uma irmã e que cada elemento que eu enxergava no túmulo tinha um significado: três corações feitos de pétalas para os três defuntos e 11 rosas na margem representando cada filho do casal. Dali a pouco, ele me disse, o restante da família se encontraria ali. Isso se dava por todo o cemitério.
Famílias chegavam e sentavam juntas, ao redor dos túmulos decorados. Com o pôr-do-sol, velas foram acesas e aquele aglomerado de famílias me remetia às clássicas celebrações natalinas.
Minha companheira vietnamita andava fotografando pelo cemitério, coisa que eu não tive muita coragem de fazer. Ela estava muito surpresa com aquilo tudo, e me dizia que nas poucas vezes que foi ao cemitério, a mãe não a deixava entrar em casa sem antes se limpar dos espíritos do lado de fora. O cemitério era justo posto atrás da igreja, e passei a maior parte da reza do rosário (chamaram assim, mas foi só um terço) parada diante de um mesmo túmulo, onde eu parecia que incomodava menos as pessoas.
Às vezes um homem aparecia ali para colocar mais incenso e percebi que ele cuidava de outras duas lápides. Puxei assunto, ele me disse que eu estava diante do túmulo de uma tia, e que os pais estavam logo atrás de mim. Mais gente ia chegando, e as famílias cumprimentavam seus vizinhos. Pensei na importância de manter uma relação saudável com os parentes dos mortos cercanos e depois pensei sobre viver como morto e ter que conviver a eternidade com os do entorno.
No dia seguinte, no Museu de Arte Moderna, um pensamento semelhante me ocorreu. Na sala que tinha um recorte da coleção, no último andar do prédio principal, um quadro de Frida Kahlo estava ladeado por um de David Alfaro Siqueiros. Artistas contemporâneos, o famoso muralista participou da primeira tentativa de assassinato de León Trotsky, exilado da União Soviética no México. Frida recepcionou o revolucionário comunista quando ele recebeu do então presidente Lázaro Cárdenas o asilo político. Se um pedaço de nossa alma fica nas coisas que produzimos, só lamento por Frida e Siqueiros estarem tão juntos em um espaço que se vê tão grande.
(Por conta dessa minha questão com a morte, e desse meu interesse em entender como as pessoas lidam de diferentes formas com a mesma coisa, me recomendaram o primeiro episódio da série The Story of God, com Morgan Freeman, que é justamente sobre esse assunto. Repasso a recomendação)