Nise da Silveira e o ateliê no Engenho de Dentro

O meu caminho já cruzou com Nise da Silveira em muitos momentos diferentes. Mas só agora, com alguma calma, parei para prestar atenção de verdade na trajetória dela. Descobri que somos duas filhas únicas, nascemos sob o signo de Aquário e que, apesar de ela ter estudado Medicina, a simples ideia de ver sangue já a deixava meio zonza (eu igual!). É claro que nós procuramos criar relações de similaridade com gente que achamos maravilhosa. Meu trabalho nesse texto é, então, tentar mostrar por que acho Nise uma das pessoas mais incríveis sobre as quais já li a respeito.

Nise da Silveira nasceu em Alagoas, na capital Maceió, em 1905. Estudou Medicina na Faculdade de Medicina da Bahia e se formou em 1926 junto com seus outros 157 colegas homens (Nise era a única mulher!; uma das primeiras a se formar nesse curso no Brasil). Um ano depois, quando seu pai morreu, mudou-se para o Rio de Janeiro. Ela conta em entrevista ao poeta Ferreira Gullar que como não conseguia emprego, procurou um lugar barato para morar e foi parar em Santa Teresa, no Curvelo. Ali também moravam dois poetas, Manuel Bandeira e Ribeiro Couto. Nessa época, começou a se aproximar dos círculos artísticos e políticos da cidade que era capital do país.

Aos 27 anos, Nise foi aprovada como psiquiatra em um concurso público e, em 1933, começou a trabalhar numa instituição que era conhecida como Hospício Pedro II (o hospital psiquiátrico da Praia Vermelha). Em 1935, por conta de uma denúncia feita por uma enfermeira do hospital que viu livros marxistas que eram de Nise, a médica foi presa pela ditadura de Getúlio Vargas e mandada para a Casa de Detenção, onde também estava o escritor Graciliano Ramos. No seu livro Memórias do cárcere, Graciliano conta sobre a Sala 4, cela que Nise dividiu com outras mulheres militantes, como Olga Benário.

Entre esse período e 1944, Nise não pôde exercer sua profissão e ficou, junto com seu marido, praticamente clandestina por razões políticas. Só em 1944 é readmitida no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II – no Engenho de Dentro. Passadas as turbulências políticas do Período Vargas, Nise começou a enfrentar batalhas em outras frentes. Técnicas super invasivas passavam a ser usadas no tratamento de diversas doenças. A médica se opunha aos métodos que considerava inovações perversas e precisou ser transferida de setor. Como todas as enfermarias adotaram a última tendência no trato com os pacientes, Nise só era bem-vinda no setor de Terapia Ocupacional.

E foi ali que começou uma mudança significativa no tratamento com os internos do hospital. Junto com um funcionário que também não estava muito bem em suas funções burocráticas, um jovem estudante de artes chamado Almir Mavignnier, Nise da Silveira criou um ateliê dentro do hospital psiquiátrico. Ali, os pacientes eram convidados a se expressar artisticamente de uma forma livre, longe de injeções, pontos e choques elétricos. O material produzido pelos pacientes era tão rico e diverso que em 1952 foi criado lá dentro um Museu de Imagens do Inconsciente e isso abriu espaço para discussões sobre loucura, sanidade e arte. Muitos artistas de fora do Engenho de Dentro passaram a frequentar a instituição e muitas obras produzidas pelos pacientes foram expostas em instituições artísticas.

Nise da Silveira também foi pioneira ao pensar a introdução de animais como co-terapeutas no tratamento de pacientes com transtornos psíquicos. Sobre esse assunto, ela escreveu um livro chamado Gatos, a emoção de lidar e com certeza era boa conhecedora, já que em determinado momento chegou a ter 25 desses bichos em sua casa. Além disso, Nise criou, pouco tempo depois do Museu no hospital psiquiátrico, uma casa de reabilitação para os pacientes que tinham alta. Ela percebia que muitos ainda precisavam de cuidados e na Casa das Palmeiras poderiam continuar a se expressar artisticamente enquanto se buscava também a reinserção deles na sociedade. Esse lugar chama-se Casa das Palmeiras e segue funcionando no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Nise da Silveira morreu em 1999, aos 94 anos, mas seu legado continua fundamental.

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Esse texto saiu primeiro na Revista Capitolina

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