mais ou menos o que escolhi revelar

Este texto é sobre vários episódios de House of Cards

Ela me disse “ao contrário de você, eu não preciso de um namoro para ser feliz”. Eu não entendi o sentido da frase, mas foi bem por ali que nossa amizade começou a degringolar. Menos por ter ficado ofendida _não havia ofensa alguma_ e mais pela leitura errada que ela fez de mim. Tínhamos dezoito anos e meu namoro não tinha mais do que duas semanas. Jamais achei que precisava dele para ser feliz. Aquela relação _e provavelmente todas as outras_ não foram mais do que circunstanciais na minha vida.

Só que foi numa noite dessas, dividida entre a Casa Branca e a casa no Texas, que entrei na cozinha do apartamento e comentei com a minha amiga:

– Estou preocupada que o meu casal ideal é Claire e Francis.

Chegamos à quarta temporada e, adaptada à moral flutuante dos Underwood, comecei a me preocupar com coisas mais interessantes do que os meios e os fins que eles optaram por percorrer. Frank já tinha avisado: tudo na vida tem a ver com sexo; exceto o sexo, que tem a ver com poder. A frase, parece, é de Oscar Wilde e veio no nono episódio, ainda na primeira temporada. Aquele saudoso tempo em que Francis olhava bastante em nossa direção e destruía qualquer expectativa de que as coisas seriam simples entre todos nós.

A triste verdade é que o primeiro casal americano, que chega até mim com uma cumplicidade que nenhuma Zoe Barns poderia supor que existisse, me fascina pela praticidade da relação. Realpolitik seria divertida de acompanhar, se eu conseguisse constituir um estômago forte o bastante para tanto. Por isso, a versão de “política realista de relacionamento amoroso” que o casal Underwood inventou para si é meu pragmatismo favorito no mundo da ficção.

Não importa se eles se afastaram – até o momento contabilizo duas rupturas – porque as aproximações os tornam mais poderosos. Se amor é uma palavra vaga, abstrata, cheia de significados construídos ao longo de séculos e séculos, Francis diz um “Claire, eu te amo” naquele mesmo nono episódio, enquanto mata adversários em um jogo de videogame. Ela responde que também o ama e pronto! a mágica está feita. São poucas as vezes em que vemos os dois se tocarem na série, e a maioria delas acontece justamente na frente de outras câmeras, na representação de um casal exemplar, que se constrói junto, se auxilia.

A verdade é que os Underwood só podem ser meu casal exemplar no completo oposto disso. Como se fossem uma mesma pessoa, conseguem se comunicar sem falar muito e isso me obriga a tentar ser um terceiro elemento ali, pra entender aonde eles querem chegar. Às vezes, nessa brincadeira voyeurística, me torno um quarto elemento do casal. Só que quando parece que o senhor e a senhora Macbeth do Netflix se fundiram em um só ser em busca de um objetivo específico, eles se chocam por seus interesses de pessoas diferentes que são. Parece que não conseguiram abrir mão até a presente data de serem indivíduos, antes de serem um corpo Underwood.

Os “eu te amo” são, assim, ditos em momentos esparsos e até em contextos esquisitos. Mas a gente não duvida desse amor, porque é fácil perceber que eles precisam um do outro. Em quatro anos juntos – eu, e eles dois – já posso dizer em tom confessional _olhando para a câmera_ que só sei amar do modo que um Underwood ama outro: com o paradoxo de ser ao mesmo tempo circunstancial e “mais do que tubarões amam sangue”.

Esse texto saiu primeiro na newsletter No episódio anterior

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