Fita do Senhor do Bonfim, um nó

Hoje faz dois meses desde a última conversa que tivemos e me pergunto quanto tempo mais estaremos assim. Faz dois meses que você disse me amar e, por isso, deu um passo para trás, saindo da minha vida sem deixar muita explicação. Ainda não entendi bem o que aconteceu e aproveito esse espaço para contar isso, já que não sei quando voltaremos a nos ver, a nos falar, a trocar confidências, como cinco anos atrás. Nesses dois meses, muita coisa aconteceu, mas se te contasse os detalhes, talvez machucasse seus sentimentos. Poupemo-nos. Tem uma coisa que continua igualzinha, porém, e eu queria muito desvendar. A fita do Senhor do Bonfim que você me deu. Faz já uns quatro anos que ela repousa apertada, por um nó apenas, no meu tornozelo. Faz uns quatro anos que, de tempos em tempos, imagino que o que pedi já se realizou, mas a fita continua ali, desgastada, mas firme, pondo em dúvida minha crença sobre finalmente ter chegado onde desejei. Eu dispensei a esse pedaço de tecido uma confiança que não sabia que era capaz de ter. Em ninguém. E justamente por isso fiz apenas um pedido, não os três a que teria direito, como vivem me lembrando. Quatro anos atrás, eu só me sentia completamente incapaz de resolver uma coisa na vida. Acho que não posso contar os detalhes do desejo que fiz, correndo o risco de carregar por mais quarenta anos essa fita amarrada em mim. Você me entende, né? Às 7h43, todos os dias, uma luz amarela entra no meu quarto pela fresta da cortina, porque a janela — você lembra — é grande demais. Esse é o primeiro momento em que abro os olhos, faço um esforço mental para lembrar que dia é e até quando posso desfrutar da cama antes que o atraso seja iminente. Minha cama é meu refúgio — você também deve entender. Nossa foto está logo ao lado dela e só agora penso que nunca pertenci ao seu mural de lembranças. Isso nunca me incomodou, era como se eu fosse a vida presente e não a beleza de outrora. Será que nesses últimos 60 dias fui cristalizada em forma de fotografia para você? Penso em todas as camas que já dividimos — essa, inclusive, a sua, as das viagens que fizemos. Se me enviasse uma mensagem agora, te chamaria para ir ao parque e, na grama, contaria sobre o último livro que li. Um romance contemporâneo japonês, do Murakami. Grifei um trecho que me lembra você: “Então me ocorreu que, apesar de sermos companheiras de viagem maravilhosas, no fundo, não passávamos de duas massas solitárias de metal em suas próprias órbitas separadas. À distância, parecem belas estrelas cadentes, mas, na realidade, não passam de prisões, em que cada uma de nós está trancada sozinha, indo a lugar nenhum. Quando a órbita desses dois satélites se cruzam, acidentalmente, podemos estar juntas. Talvez, até mesmo, abrir nossos corações uma à outra. Mas só por um breve momento. No instante seguinte, estaremos na solidão absoluta. Até nos queimarmos completamente e nos tornarmos nada”. Às 7h44, retomo o sono virando para o outro lado da cama, esse refúgio tão grande que a solidão se faz inescapável e, só mais tarde, desperto, chuto o lençol por cima das pernas e vejo, enquanto me estico, a fatídica fitinha do Senhor do Bonfim. Em A Gaia Ciência, Nietzsche escreveu um aforismo, o 279, em que fala da distância de dois amigos, provavelmente sobre a briga que teve com Wagner. Também pensei em você quando li. Ele diz que esses amigos jamais se verão novamente e, se se virem, não se reconhecerão passados tantos mares e tantos sóis, mas que em alguma curva invisível na órbita estelar seus caminhos se encontram. O fato de eu não acreditar em praticamente nada faz com que acredite em muitas coisas ao mesmo tempo. O daruma com um dos olhos pintados repousa em cima do meu gaveteiro e me encara enquanto cutuco a fita no tornozelo. É meu segundo daruma e me arrependo de ter feito um pedido muito abstrato para ele, porque, assim como com a fita, tenho dúvidas se já não alcancei a prosperidade à época desejada. Você me falava que eu era muito ansiosa, que me atropelava nas minhas vontades. A fita do Senhor do Bonfim foi uma solução estoica para esse meu problema. Foi só depois que a amarrei que me contaram que a composição do tecido mudou, em escala industrial, e que o que antes se realizava rápido passou a ter solução no médio prazo. “Ainda bem que pedi só uma coisa”, pensei. De repente, tudo que era urgente foi imediatamente transposto para uma área nebulosa e, como um mistério numinoso, fui forçada a aprender uma nova noção de tempo, uma que não pertencesse a mim. Como o seu tempo, por exemplo. Como o nosso tempo.

Essa crônica foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem.

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