evidências, células cinzentas e o mínimo de sangue possível

Este texto é sobre Poirot, de Agatha Christie

Na quinta série, fiquei muito amiga de Laura. Pulávamos o muro da escola perto da casa dela pra jogar futebol e lembro de um épico tombo de patins que levei naquela rua. Lembro de ter saído por ali no Dia das Bruxas com ela e outras crianças pedindo doces de casa em casa. Naquele ano, passamos o Carnaval vendo uma infinidade de clipes na MTV porque a irmã de Laura era roqueira e esse era o jeito roqueiro de curtir o feriado. Só que no escritório da casa da Laura, tinha um monte de livros de uma mesma escritora, que a mãe dela amava. Um dia, cheguei em casa e perguntei se minha mãe tinha algum livro de Agatha Christie na estante. Tinha. E daí já era.

Dos onze aos treze anos de idade, eu rabiscava as iniciais HP nas margens dos meus cadernos quando não estava prestando muita atenção na aula. A princípio, podia ser um sinal de idolatria aos Harry Potter, coisa que realmente aconteceu e durou mais ou menos até os dezesseis anos. O problema é que um outro personagem ficcional que eu amava tinha as mesmas iniciais: Hercule Poirot. Eu li inúmeros livros de Agatha Christie nessa época da vida, e precisei criar regras como, por exemplo, não ler depois das 18h porque ficava paranóica, achando que o assassino estava no quarto ao lado.

Um sábado à tarde, mudando o canal da tevê vi ninguém menos do que Hercule Poirot na minha sala. Fiquei impressionada, era ele mesmo. Veja bem, eu lia os livros sem ilustrações, e mesmo assim tinha certeza de que não poderia haver outro homem baixinho, com um bigode bem ajeitado e cabeça em forma de ovo com seu chapéu-coco que tratava seu intelecto como um conjunto de células acinzentadas. Foi dessa forma, lá pelos doze, que descobri que existia uma série chamada Poirot, de Agatha Christie e que quando eu não queria ler os livros podia simplesmente assistir ao Poirot resolvendo crimes. A série foi ao ar no Reino Unido entre 1989 e 2013 com 70 episódios adaptados da obra da escritora inglesa.

Conforme fui me aproximando de entrar na faculdade, o tempo para ler meus romances policiais foi escasseando e eu mesma fui desenvolvendo gosto por outros tipos de escrita. O que eu não percebi na época em que eu escolhi o curso de História é que sempre teria algo de Poirot em meu trabalho acadêmico. Pode não parecer, mas o historiador, o médico e o detetive de romance policial tem muito em comum (só que eu escolhi ser profissional que tem menos contato com sangue em comparação com os outros dois). Se você pensar em House, por exemplo, ele se parece muito mais com Poirot do que com qualquer médico que já te atendeu na clínica. Não é à toa que o melhor amigo do Doutor House se chama Wilson; elementar… Fato é que cada um de nós (Poirot, House e eu fazendo pesquisa no arquivo) pega um apanhado de evidências e tenta transformar em uma narrativa explicativa sobre um acontecimento, um conjunto de sintomas ou um crime insolucionável.

Cada vez que solicito os documentos e peço que a caixa do arquivo me seja entregue, pego o lápis e as folhas verdes de sulfite para fazer minhas anotações, e leio os documentos em busca de alguma pista sobre meu objeto de estudo, sei que aqueles anos de leitura de romances policiais foram anos de formação metodológica e não um mero passatempo de filha única entediada nas férias de inverno em casa. E cada trabalho que dou conta de escrever com base nos documentos que me restaram de um passado ao qual não pertenci parece mais divertido do que resolver um crime antes que a equipe do inspetor-chefe da Scotland Yard chegue lá!

Esse texto saiu primeiro na newsletter No episódio anterior

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