Tudo está calmo agora, como se a tormenta tivesse passado e pudéssemos pousar em paz. A diferença é que sabemos _eu pelo menos sei, e sei só agora_ que pousamos sobre um amontoado de areia, que a qualquer momento será cataclismado e nos deixará _pelo menos alguma de nós_ mais uma vez sem chão.
Foram oito meses de tanta angústia que olhar para trás dá um pouco de vertigem. É estranho pensar que sobrevivi ou me perguntar como sobrevivemos, mas agora é só memória cristalizada. Um cristal tão frágil que qualquer menção ao toque o fará em incontáveis pedaços enquanto ainda houver tempo.
Existe algo de muito triste em nós três. Mas eu não consigo me aprofundar nos pensamentos de uma ou nos sentimentos da outra. A gente simplesmente sabe, e compartilha um olhar meio vago. Eu nunca enxerguei o que cada uma de nós tem da outra. Talvez uma docilidade meio arredia, um importar-se descompromissado. Talvez até uma bondade. E a busca por determinados esconderijos.
Luma ia ao portão e, às vezes, chorava sofrendo _quem sabe?_ pela partida do Feroz. Ela que já não dormia quando ele latia em dores, e que latia com ele em uma sinfonia de desespero que enchia a casa. Eu suspeito que minha avó ainda chore, vez ou outra, pela ausência do meu avô. Desde aquelas noites em que não dormia, pensando nas próximas visitas ao hospital, nas orações que o salvariam, na urgência de que ele voltasse a respirar. Aquelas cem noites mal dormidas. Eu, sozinha, nunca chorei pela perda que me coube (além das outras duas). Me pergunto se a natureza da perda era diferente ou se a nossa é que é assim tão distinta.
Numa mesma semana, duas amigas me procuraram para falar sobre morte. Por dois motivos bastante diferentes, as duas se depararam com esse fenômeno absurdo (e natural, mas nem por isso menos absurdo) que é lidar com a morte do outro. As duas me procuraram _elas não sabiam_ na mesma semana em que completava um ano a morte do meu avô. Todo fim é evitável na linguagem. Porque se ele não tivesse subido e não tivesse caído, não teria ido para o hospital, não seriam cem dias, não morreria. Mas se ele não tivesse, não seria ele. Esses tempos verbais que permitem mudar o passado não ajudam nos momentos de dor.
Quando eu fui embora, havia um amor profundo. E todos viam, e pediam para se responsabilizar de alguma maneira pelos momentos seguintes de felicidade. E pediam que tomassem conta de mim, e diziam que tomariam conta dele. Quando eu fui embora, levei uma mala resolvida em sucintez, uma carta carregada de prepotência e um abraço que pesava uma vida. Quando eu fui embora, as conversas _eu soube_ giraram ao redor de quem eu era e do que eu fiz. Usavam os verbos no passado. Como se eu tivesse morrido. Naquele momento, a linguagem criou o fato.
A morte do meu avô foi o início da construção de um vazio em casa. A toalha sumiu, o casaco azul com a gola marrom que habitava o mancebo, as coisas no armário esquerdo do banheiro. O vazio na cadeira de balanço, na poltrona da sala, do lado esquerdo da cama. A mesa ficou maior sem ele na ponta. As garrafas de vinho de Santana, porém, são a única exceção, seguem cheias mesmo depois de seu sumiço. O fim dos vestígios podem mobilizar as memórias. Uma das lembranças mais vivas que tenho é de ser empurrada por ele em um carrinho de supermercado, pendurada à frente nas grades. Brincávamos juntos, enquanto minha avó percorria as prateleiras, ignorávamos os 54 anos de diferença entre nós.
Meu avô acreditava na vida eterna (na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne). Eu _imagino que ele sequer supusesse isso_ me convenci em algum momento de que a morte é o fim da existência. Lembro de quando essa possibilidade apareceu pela primeira vez, aos treze, e eu e um amigo nos olhávamos embasbacados com a ideia de acabar em um não-lugar. Essa narrativa é um pouco isso. Porque, no início, havia tudo. E então fez-se o nada. E agora é esforço para colocar isso em ordem.
Eu falava como ela é boa, tranquila, com uma felicidade genuína ainda que já tenha muita idade. Minha interlocutora respondeu dizendo que parece que é verdade que os cachorros pegam o jeito dos donos. Senti-me lisonjeada, sorri. Mas tantos dias eu olho para mim e me pergunto se não sou uma pessoa ruim, se não estariam todos iludidos por uma falsa aparência. Eu rompi com a culpa, mas isso não impede que eu me pergunte quantas vezes fui responsável por machucar quem eu não queria.
Eu necessito silêncio e não é incomum me ver em fuga. Eu preciso fugir para dentro de um silêncio profundo ou para uma quieta sonolência. Quando eu era criança, escondia-me embaixo do armário e ficava horas calada. É uma forma de entender, a maneira entranhada _beira a literalidade, de um jeito corporal_ de entender. De tudo que contei, neste afã dos que advogam a cura pela fala (e não era deus o verbo?), a discrepância entre a essência e a aparência é a que demandará ainda muita quietude.
Certas coisas são sagradas. Fingimos que não, que nos movemos com liberdade através da blasfêmia contemporânea. Tarda um pouco, mas percebe-se que certas coisas são sagradas. Eu me permito não saber, mas não me permito ser ingênua. Certas coisas são sagradas e já saíram do nosso plano para uma utópica dimensão. Nossos segredos, por exemplo. Nossos segredos habitam uma eternidade inalcançável. Eu, que deixei logo cedo de crer no sacro; eu, que me dei conta de que a comunicação humana é o primeiro passo para a condenação de qualquer segredo enquanto tal, percebo agora como há sacrilégio em não respeitar o que era apenas nosso. Por isso, passei a esquecer. Esqueço sistematicamente o que deveria guardar, porque esquecer é a forma de livrar-me das tentações, esquecer não é vontade própria, mas um jeito particular que o passado se apresenta para mim. Um grande bloco opaco, sem encantamento, com um enjoativo odor de naftalina. Possuí seus segredos. E assim pude ocultá-los de nós _e de todos.
Das coisas de que me lembro muitas não entendo. Meu avô me contava histórias sagradas que eu acompanhava com interesse e perplexidade. Narrativas que me permitiam entender a história, mas que me confundiam quanto à forma pela qual deus se manifesta aos que crêem. Possivelmente outras tantas coisas permanecerão sem respostas. Porque não me atrevo mais a fazer perguntas.
Cada um teve que descobrir como viver depois da morte do meu avô. Ainda me lembro de como nós, as crianças, chorávamos e nos abraçamos em completo desconsolo. Eu já tinha chorado uns noventa dias antes. Primeiro, na viagem de ônibus que atravessava a cidade. Lembro de duas mulheres que conversavam, de um homem que vendia cartões feios e de como eu não conseguia controlar as lágrimas dentro de mim. Não me esforçava, é verdade. Sabia que era meu dever e minha salvação, ali, chorar, pressentindo o pior. Depois, chorei na mesma noite entre os adultos. Todos tinham tanto controle e eu mais uma vez sabia que seria vão meu empenho. Entrei em um estado de letargia, que só se rompia quando, presente ao quarto do hospital, minha pressão baixava e eu buscava uma força _que não vinha!_ para parecer valente. A prostração morreu junto com ele e, depois de outra viagem, eu sentia a dor não no coração como a literatura insiste em ensinar, mas em algum lugar perto do estômago. Me apertava e me contorcia, distante. O vazio se criava a partir do meu próprio umbigo.
De altura, minha avó não mede mais do que eu e sempre foi minha referência de rijeza. Muito séria, compenetrada em suas responsabilidades. Eu nunca percebi isto ou noto só agora porque, de fato, as coisas mudaram, mas às vezes seus olhos marejam, o nariz se avermelha e a voz embarga. Às vezes, com uma lembrança do passado, que me conta com tom de ensinança, às vezes a mais banal notícia de telejornal sobre a alegria do personagem escolhido. O tempo devora seus filhos. Com a velhice do Feroz, fui ensinada como o tempo passa. O tempo passa a ponto de todos nós já termos sentido o que é um amor desfeito _mesmo aqueles que nunca sequer começaram. A ponto de já termos visto com o quê a morte se parece. O tempo passa a ponto de a vida precisar se desmanchar e se refazer, incontáveis vezes com as mais diversas intensidades.
Eu tenho essa paixão pelo mar, por passar horas olhando para ele, tentando desvendar seus misteriosos movimentos regidos pelos astros. Dentro dele, eu o desafio, apesar da minha notável fraqueza. O mar me engole de sopetão e rodo dentro da onda. Me acostumei com essa violência e me concentro em segurar a respiração enquanto penso “uma hora isso acaba”. Foram assim aqueles oito meses. E o atordoamento e o receio de que não fosse ainda a hora quando tudo parecia terminado perduraram.
Eu havia suplicado para que a beleza se mantivesse. Para que o amor pudesse ficar ali, congelado, em um espaço-tempo de eternidade. Mas não conseguimos. Tivemos que à força destrui-lo. Meus avós nunca poderiam se separar, quando os dois viviam. E, assim, precisaram ressignificar o que era amor milhares de vezes, suponho _ apenas suponho porque nunca houve, nessa casa, visita às nossas intimidades. Nós dois pudemos e escolhemos vivenciar o fim. E a única mudança de significado era, no fundo, uma mudança de vocábulo. Não parece verdadeiro dizer que a gente só conhece o valor quando perde. É, provavelmente, o inverso: nós amamos por completo porque sabemos que acaba. A beleza me dói em um canto imerso do ser. Isso eu já sabia antes. Agora só me pergunto se o que me dói nesse mesmo lugar é, tão somente por isso, belo.