Para sair da zona norte, um dos caminhos mais utilizados era a Ponte Cruzeiro do Sul. Desde muito pequena, então, eu via da janela do carro uma estranha construção em que pernas de homens ficavam penduradas entre grades. Eu pensava que os homens que escolhiam ficar nas janelas eram como eu, que assistia à televisão de ponta-cabeça, me balançava perigosamente em corrimãos, escalava as grades do portão da casa da vó. Demorou alguns anos pra eu entender que naquele prédio homens viviam mesmo era amontoados em espaços minúsculos, e levou ainda mais tempo para eu descobrir que um evento de quando eu tinha dois anos de idade provavelmente assombrava uma parcela dos donos daquelas pernas que eu via da avenida. O massacre tinha sido em 2 de outubro de 1992.
O Carandiru foi ao chão, virou parque mas abriga um memorial. O livro de Dráuzio Varella foi feito filme por Hector Babenco. “Diário de um detento” é um marco na nossa música e a obra de Sabotage, que estrelou o filme, recebeu uma homenagem fortíssima há mais ou menos um ano. Culturalmente, a memória resiste. Em termos de justiça, é doloroso lembrar: a soma dos 111 mortos – imagina-se que foi mais do que isso – viu os partícipes do massacre serem amplamente inocentados.
Ano que vem termina em 8. Jornais, sites, revistas, eventos acadêmicos vão falar de 1968. Vão falar da decepção socialista na Tchecoslováquia, da revolução moral francesa – menções a pílula anticoncepcional e à minissaia compõem o bingo – e com quase certeza absoluta haverá inúmeras discussões sobre o endurecimento do regime ditatorial no Brasil com a assinatura do Ato Institucional Número Cinco. Pouca gente vai lembrar de Tlatelolco, na Cidade do México, palco de uma ação militar contra estudantes em greve. O número de vítimas nunca foi consensual, variando de dezenas a centenas. O massacre foi em 2 de outubro de 1968.
O assassinato em praça pública de pessoas em um ato contestatório contra o governo mexicano foi documentado por Elena Poniatowska no livro La noche de Tlatelolco: Testimonios de historia oral. Passei a maior parte da minha viagem ao país lendo esses relatos perturbadores. O grande mérito da jornalista é apresentar depoimentos diversos coletados nos dois anos que se seguiram ao evento. O livro foi publicado pela primeira vez em 1971. Muitos dos depoimentos são contraditórios entre si e assim Poniatowska deixa claro que não há verdade absoluta. Por isso, apesar de eu sentir vontade de grifar algumas passagens, me contive. Não queria validar mais ou menos o que é documento histórico e que passa pela subjetividade de um monte de gente (que se posiciona sobre luta sindical, interesses estudantis, o papel da imprensa e as escolhas de polícia e governo). Queria que as palavras das vítimas tivessem um peso absoluto, em si mesmas, que fossem igualmente importantes e incomparáveis.
Conforme fui me aproximando dos relatos que falavam especificamente do dia, mais me lembrava do 2 de outubro paulistano. Decidi então ir a Tlatelolco ver a Praça das Três Culturas que tem esse nome porque o espaço é disputado por ruínas pré-colombianas, uma igreja da época da colonização e um conjunto habitacional no entorno. Famílias viam as ruínas, enquanto eu sentia mal-estar ao imaginar aquilo que os textos me contavam. Um grande grupo de jovens escolheu a praça para assembleia em meio a uma greve estudantil. Na semana anterior, em manifestação em favor da autonomia universitária, inúmeros estudantes tomaram a praça central da cidade, o Zócalo. Em Tlatelolco, homens de luvas brancas alvejaram o público, indiscriminadamente. O grupo de ação militar tinha o nome de Olympia, porque o país estava prestes a ser sede olímpica. A morte e a prisão de manifestantes foram caminhos para impor a ordem necessária para que um evento de magnitude mundial acontecesse sem ruídos. A memória das Olimpíadas de 1968 eu encontrei em loja de museu. A dos covardemente assassinados só vi no spray de anônimos pixadores.
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Nossa, dói ler esse tipo de texto (tão bem escrito e sensível, a propósito) e perceber que mesmo achando esses episódios históricos lamentáveis, também estou condicionada ao sentimento e à tristeza de saber que as pessoas esquecem o que passou e repetem os mesmos erros de novo e de novo, por mais atrozes que sejam e a despeito da necessidade óbvia e gritante de aprender com eles e tentar mudar esse curso.