entre lembranças e descobertas

Eu tô tentando lembrar quem eu sou.

Desconfio que nunca tenha me preocupado em saber, de verdade. Poucas vezes pensei em quem eu era, muitas vezes em como eu estava. É fascinante que no português exista essa distinção entre ser e estar e exista uma forma de eu contar isso, sobre essa maneira que eu mesma existia. Tenho tentado escutar minhas vontades e não odiá-las por medo ou vergonha. Lembrar quem eu sou é, no fundo, entender meus valores. Mas esses valores não habitam dentro de mim desconectados de um contexto. Minha liberdade ou minha autonomia dependem das condições em que elas possam se manifestar. Minha vontade de estar próxima de quem eu amo, de compartilhar comida, afeto, uma carona com um desconhecido na estrada depende de contexto. Eu sinto que estou me conquistando de volta, que consigo lembrar como era o passado, como era entrar num ônibus com desconhecidos, e uma hora e pouco depois estar em outra cidade, em outra vista. Como era o lugar onde o rio encontra o mar. Como era quando a maré subia num susto, me forçando a escolher o que salvar da onda que avança. Tem tanta coisa morando dentro de mim, sempre teve, mas agora elas vão ganhando nomes, espaços, momentos para emergir. Eu tô lembrando quem eu sou e por que gosto de me ser.

Eu tô tentando descobrir quem eu sou.

Teve um dia, um ano atrás, mais ou menos, em que eu quebrei. Fiz meu exercício físico dentro do quarto, comecei a chorar e não sabia mais parar. Não existe outro verbo pra essa situação, eu simplesmente quebrei. Eu queria explicar o que aconteceu naquele dia, mas é algo muito meu, e vou deixar assim. Mas a partir dali eu precisei juntar peças de mim mesma. E pra montar essas peças, eu precisava conhecê-las, saber com o que se pareciam. Eu tive que cutucar cicatrizes e olhar por dentro delas pra ver se algo ali havia infeccionado, se era ali que doía o que mais doía e, se não era, onde podia ser. Eu descobri que tenho muita raiva, mas que reclamo pouco. Que ter passado anos sem chorar na adolescência foi uma estratégia de sobrevivência. E se eu sobrevivi a tanto, eu já posso assumir que sou também fraca na mesma medida em que me fiz forte todo esse tempo. Eu descobri que tenho muitas dúvidas sobre mim, mas também tenho certezas profundas. Neste momento, por exemplo, estou certa de que não quero mais desconfiar de quem eu sou.

outubro/2021

Uma resposta para “entre lembranças e descobertas”

  1. eu gostei muito do seu texto (as fotos, sempre ótimas) porque estou passando pelo mesmo, especialmente hoje. estou aprendendo a diferenciar ser com fazer, e sei tudo o que faço, mas não sei dizer quem eu sou, tipo: o que sou eu quando eu não estou fazendo alguma coisa? tudo que é meu ofício se confunde com o que sou eu. e isso gera muita melancolia.

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