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2020 seria. Já pra lá de sua metade, ainda não me habilito a dizer o que 2020 foi ou tem sido. Porque, inclusive, a desorientação temporal me acompanha há meses. Preciso de alguns momentos para saber se esse calor é de abril ou uma estranha onda em julho. Eu custo a lembrar de quando foi a Páscoa e nem me habilito a pensar sobre o futuro, por mais próximo que ele seja. Escrevo do lugar onde passei a maior parte – quase parte absoluta – dos últimos cinco meses: meu quarto.
Dentre as tantas coisas que 2020 seria, uma das mais relevantes era a denominação “ano olímpico”. Outros grandes eventos foram se arranjando em versões virtuais, seminários internacionais encontraram salas online para acontecer, torneios esportivos criaram suas próprias bolhas e seus protocolos. Mas aos Jogos Olímpicos não é permitido esse tipo de migração para telas e a própria Vila Olímpica é uma bolha. O evento é, por natureza, global, da mesma forma que a circulação do Sars-CoV-2.
Precisamos ter em mente que os Jogos Olímpicos não são apenas um conjunto de competições de diversas modalidades esportivas. Um evento desse porte pode ser analisado por diversos pontos de vista. Podemos nos interessar pela história de sua recriação no século XIX, em um contexto em que potências europeias disputavam hegemonia em territórios coloniais e avançavam em seus interesses imperialistas. O que, convenhamos, distava um tanto das supostas raízes do evento na Grécia Antiga. Ou então poderíamos analisar os impactos que esses grandes eventos causam a partir de aspectos culturais, econômicos e sociais nos espaços que os sediam. E aí podemos falar da Vila Autódromo, da crise econômica que assolou a Grécia após os Jogos de 2004 ou da expulsão de londrinos de suas casas devido aos aumentos vertiginosos de aluguéis às vésperas das Olimpíadas de 2012.
Os “legados olímpicos” são de diferentes ordens de acordo com o prisma através do qual olhamos para esse evento. No entanto, nenhum dia é mais relevante do ponto de vista midiático do que o de abertura dos Jogos. Se, ao longo de um mês, veículos de diferentes países noticiam feitos e personagens das competições olímpicas e paralímpicas, o espetáculo de abertura apresenta ao mundo não apenas seus grandes atletas, mas também aspectos culturais do país que sedia a edição.
Não sei se 2020 seria o ano em que eu sentiria menos angústia em ser brasileira. Provavelmente não. Mas, trancada em casa, sem poder passar horas acompanhando os Jogos Olímpicos de Verão deste ano, quis voltar ao Rio de Janeiro de 2016, mais especificamente à noite de abertura. Na ausência da sequência frenética de competições, e também de um bem-querer pelo país em que nasci, cresci e possivelmente morrerei. Por cuidado a quem me lê, pouparei do texto a narração de todos os momentos em que, nestes meses de 2020, o Brasil se desenhou para mim como um fardo. Um verdadeiro suplício.
Revisitar aquela noite de 5 de agosto de 2016 me permite rememorar um Brasil que se esforçava em mostrar sua diversidade, usando elementos do presente, construindo um discurso sobre sua gente e sua história, mesmo com as contradições que nos formam e que são reproduzidas em nosso fazer cultural. Por cerca de quatro horas, dentro do Estádio do Maracanã – convertido, em 2020, em hospital de campanha, e palco de uma melancólica final de Campeonato Carioca -, artistas brasileiros de diferentes linguagens criaram seu palco, e milhares de pessoas no mundo foram seu público. Naquela noite de 5 de agosto de 2016, projetou-se a presença de cerca de 78 mil pessoas no estádio. Se considerarmos a transmissão televisiva global, esse público aumenta exponencialmente e distribui-se em diversas regiões do mundo.
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A cerimônia artística começou com imagens aéreas do Rio de Janeiro ao som da música “Aquele abraço” na voz de Luiz Melodia, composta em 1969 por Gilberto Gil. Acabado o vídeo introdutório, dançarinos com quadrados prateados evocavam imagem de um oceano. O hino nacional brasileiro foi cantado por Paulinho da Viola acompanhado por uma orquestra em cima de uma estrutura convexa semelhante àquela desenhada por Oscar Niemeyer para a Câmara dos Deputados no Palácio Nereu Ramos em Brasília. Uma representação da origem da vida com insetos andando pela floresta se iniciou, e dançarinos do Festival de Parintins – Caprichoso e Garantido – interpretavam indígenas que construíam suas casas na floresta. Em seguida, atores no papel de portugueses adentraram o cenário em caravelas que navegavam um mar projetado no espaço cênico.
A etapa seguinte na cerimônia é a introdução dos negros escravizados à narrativa. São eles que fazem o chão se transformar de floresta em roçado. Esses personagens não tem leveza como se viu e as marcas da escravidão não são mascaradas; andam todos juntos, acorrentados, fazendo um árduo trabalho. Logo em seguida, um grupo de dançarinos representando pessoas de ascendência árabe carregando malas (provavelmente indicando uma relação desses povos com o comércio) ocupam uma parte do cenário. Depois, a imigração japonesa é representada (lembrando que Tóquio é a próxima sede olímpica) e um grupo de possíveis chineses adentra o território. Os dois grupos encontram-se e saem de cena.
Neste momento, a lavoura transforma-se em prédios da cidade contemporânea do Rio de Janeiro, um cenário que aqueles que tem intimidade com a Bossa Nova logo reconhecem. Ao contrário do bloco passado, em que as músicas não eram reconhecíveis, aqui bailarinos dançam ao som de “Construção” de Chico Buarque. Este bloco narrativo tem um ritmo mais acelerado, provavelmente por seu contexto de modernidade e cidade urbana.
No centro do cenário, é construído o 14-Bis, pilotado por Santos Dumont. Na fantasia, isto é, em uma projeção em telão no estádio e transmitida como continuidade pela televisão, esse avião dá conta de passar por diversos pontos turísticos do Rio de Janeiro: a Catedral, os Arcos da Lapa, o Museu do Amanhã, a Marina da Glória, o Corcovado, a Lagoa Rodrigo de Freitas e a Avenida Atlântica. Há uma clara restrição geográfica quanto ao que é mostrado em oposição aos territórios que de fato compõem o município do Rio de Janeiro. No retorno ao Maracanã, o neto de Tom Jobim toca no piano a melodia de “Garota de Ipanema” enquanto a modelo Gisele Bündchen desfila. Conforme ela anda, traços de Oscar Niemeyer se desenham no chão e Jobim é projetado nos prédios.
Em uma mudança dos prédios para a favela, construída como formas geométricas coloridas, Ludmilla canta O rap da felicidade. A dança nessa parte é sempre mistura de estilos urbanos. Elza Soares, em outra parte do cenário, que tinha sido ocupado por Paulinho da Viola e a orquestra e que serviria ainda para ritos oficiais, entoa o Canto de Ossanha, composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (que foram homenageados como os nomes dos mascotes dos eventos olímpicos e paralímpicos).
Em seguida, Zeca Pagodinho e Marcelo D2 apresentam-se juntos e são substituídos por Karol Conká e MC Sofia enquanto um capoeirista se apresenta no centro do estádio. A capoeira precedeu um duelo de grupos de maracatu, que depois virou um grande baile com elementos tecnológicos. Nesse momento, a apresentadora de televisão Regina Casé interrompeu a apresentação, pedindo o fim das brigas; sua fala era a de que estamos buscando nossas semelhanças e celebrando nossas diferenças. Para concretizar esse pedido, Jorge Ben Jor cantou sua música País Tropical e o ambiente tenso da capoeira e do maracatu foi substituído por uma coreografia carnavalesca.
Outro bloco narrativo passa a ser desenhado no cenário. Um menino negro com roupa futurista chega a um ambiente distópico e começa um vídeo em que a atriz Fernanda Montenegro declama o poema A flor e a náusea de Carlos Drummond de Andrade. Apesar de Fernanda Montenegro ser muito conhecida no país por sua trajetória no teatro e na televisão, vale lembrar que ela concorreu em 1999 ao prêmio de melhor atriz na premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood pelo filme Central do Brasil. Fernando Meirelles, um dos diretores da cerimônia de abertura, foi indicado em 2004 na mesma premiação por seu trabalho de direção no filme Cidade de Deus, que recebeu outras três indicações, por roteiro adaptado, edição e fotografia.
O momento seguinte é o de entrada dos atletas no centro do estádio. Os últimos a entrar são os esportistas anfitriões que o fizeram ao som do samba-exaltação Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Quando todos os atletas, de todas as delegações, estavam em seus lugares a vista aérea remetia aos jardins disformes de Burle Marx. A transição dos ritos oficiais é feita com Wilson das Neves, baterista que à época estava com 80 anos, batucando um samba em uma caixa de fósforos e Thawan Lucas, um passista de 8 anos de idade, acompanhando o ritmo. Da réplica da Câmara dos Deputados, Gilberto Gil e Caetano Veloso convidaram Anitta para cantar outro samba-exaltação de Ary Barroso, a canção Isso Aqui o Que É. A cerimônia artística terminou com a entrada de passistas, mestres-salas, porta-bandeiras e ritmistas de escolas de samba do Rio de Janeiro.
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Interessa, então, pensar se a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016 reverberou discussões artísticas e culturais que a precedem em muitas décadas. Parece evidente que perante a necessidade de apresentar um Brasil em evento de tamanha magnitude há diversas escolhas que precisam ser feitas. A análise justamente desse evento artístico é relevante por seu aspecto oficial – afinal, autoridades de diferentes países fizeram-se presentes -, mas também por seu aspecto popular. Além disso, linguagens distintas foram contempladas no espetáculo, como pode-se perceber pelas referências ao audiovisual, à dramaturgia, à dança, à música e às artes visuais.
Foi em 2009 que a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de Verão de 2016, por votação no Comitê Olímpico Internacional, derrotando Chicago, Tóquio e Madri. Para compor a cerimônia de abertura, foram designados como diretores Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington. A menos de um ano do evento, em setembro de 2015, os três concederam entrevista para jornalistas e, ali, os principais pontos de interesse eram o conceito e as limitações que enfrentariam. Meirelles, sobre os gastos mais modestos do que os de outras edições, disse:
“Não temos os números oficiais do preço das cerimônias nem de Londres nem de Pequim, mas as pessoas do mercado que lidam com isso têm estimativas. Não é um drama, porque não faz sentido usar um orçamento espalhafatoso em um país que não tem saneamento em muitos lugares. É sensato usar bom conceito, bom gosto.”
Essa citação foi replicada no sítio oficial do governo brasileiro para os Jogos Olímpicos. Ela apresenta a impossibilidade de se comparar, do ponto de vista financeiro, o Rio de Janeiro com outras duas cidades (Londres e Pequim, anteriores sedes olímpicas). O exemplo não podia ser mais eloquente: a ausência de saneamento básico em muitos lugares do Brasil não poderia ser para a direção artística do evento uma desculpa para que o bom gosto estivesse ausente. À época, já não era exatamente nova a vinculação entre uma precariedade de recursos e a criação artística brasileira.
Em edição especial sobre o Brasil, a revista norte-americana Bomb publicou no inverno de 2008 uma entrevista do artista Vik Muniz com os designers Fernando e Humberto Campana. Muniz introduz a obra dos irmãos Campana a partir do conceito de “gambiarra” (desse jeito mesmo, em português, sem tradução) que daria conta materialmente da transformação do caos em beleza. Os três artistas em diálogo tem obras de sua autoria em importantes coleções museais do mundo como, por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Uma palavra transforma-se, assim, em uma forma de construir discursos sobre brasilidade em forma de arte. (O artista plástico Cao Guimarães produziu, entre 2000 e 2014, uma série fotográfica intitulada Gambiarras. As obras representam o uso de materiais diversos para adaptações cotidianas, em geral em objetos com defeitos.)
Uma das referências mais sutis é aquela feita às artes visuais através do concretismo. Logo no início, com os dançarinos que se organizam com quadrados. Ali, fazia-se uma menção ao concretismo, a obras feitas nos anos 1950 por artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Em artigo intitulado Brazilian Female Artists and the Market, Ana Paula Cavalcanti Simioni e Bruna Fetter apresentam dados dos valores alcançados por artistas brasileiros (tanto do sexo feminino quanto do sexo masculino) em leilões internacionais. Na tabela que leva em consideração o período de 1998 a 2011, Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape, três signatários do Manifesto Neoconcreto de 1959, apareciam respectivamente na quarta, sexta e décima colocações.
Oiticica é o artista que, em 1967, defende em texto publicado no catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira a existência no país de uma “vontade construtiva geral”. Em balanço sobre a produção artística brasileira na década de 1960, Paula Braga aponta significados para essa consideração do artista:
“A vontade construtiva geral aponta para a questão da modernidade inacabada no Brasil, o permanente estado de construção do país, tanto em sentido infraestrutural quanto superestrutural: a própria cultura, com sua peculiaridade antropofágica – ‘a arma criativa’ – permanece, na visão de Oiticica, em perpétua construção.”
Se o concretismo dos anos 1950 parece uma manifestação muito específica da arte brasileira, arrisco dizer que ao seu redor gravitam outros momentos importantes da criação artística que quis pensar o Brasil e a brasilidade (ou o ser brasileiro). Embora a arte concretista, tanto em sua vertente mais racionalista quanto em sua vertente experimental, apareça como um novo momento em relação ao Modernismo dos anos 1920 ou à arte de vanguarda que emerge nos anos 1960, ela parece estabelecer uma relação dialógica entre os eventos. E Hélio Oiticica é possivelmente o elo mais visível dessa relação.
O envolvimento de diferentes linguagens artísticas sob uma mesma apresentação, como foi a de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, não é algo novo dentro do escopo da Tropicália. Foi a partir de obra com esse título de autoria de Hélio Oiticica e exposta em 1967 na mostra Nova Objetividade Brasileira, anteriormente mencionada, que Caetano Veloso apropria-se da palavra para nomear a canção em que canta: “Eu organizo o movimento / Eu oriento o Carnaval / Eu inauguro o monumento / No planalto central do país”.
Nos anos 1960 e 1970, após a consagração dos modernistas da década de 1920, a memória de Oswald de Andrade começa a consolidar-se, através de processos culturais bastante interessantes. A obra do escritor passou a ser revisitada, tanto em seus textos de teatro (como O rei da vela, montado em 1967 por José Celso Martinez) como em seus textos combativos estética e politicamente. Assim, o tropicalismo, movimento tão complexo quanto o modernismo do começo do século, e que dialoga com a percepção do nacional em um contexto de modernização, transformou a ideia de “Antropofagia” oswaldiana em sinônimo de “Tropicália”.
Esses ecos foram perceptíveis em 1998, quando a Bienal de São Paulo teve, sob curadoria de Paulo Herkenhoff, um Núcleo Histórico pautado pelo conceito de “Antropofagia”. O título dessa seção da exposição era Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros., trecho justamente do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, publicado na Revista de Antropofagia, em 1928 (ou, como indica o autor, no Ano 374 da Deglutição do bispo Sardinha). Dá-se, dessa forma, a transformação de uma palavra que remetia a rituais em que seres humanos alimentavam-se da carne de outro seres humanos para um valor positivo da cultura praticada, criada e vivida no território que um dia foi chamado Pindorama.
Em balanço feito dez anos depois, disse o curador da 24ª Bienal de São Paulo: “Secretamente, eu queria servir o biscoito fino da arte brasileira. Oswald desde cedo me propunha os parâmetros”. Nesse mesmo texto, Herkenhoff conta que havia a pretensão – não realizada – de que a Bienal seguinte tivesse como eixo a Tropicália e os conceitos de bagunça (caos) e ordem.
No Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade alega que “somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas” e, em 1980, o poeta e teórico Haroldo de Campos debruçou-se sobre a questão da cultura no Brasil em texto chamado “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Com distanciamento histórico, Campos propô-se a fazer um balanço em que se explica a radicalidade do projeto cultural do qual fez parte no Brasil do século XX. Teria sido naquele momento que “a poesia concreta, brasileiramente, pensou uma nova poética, nacional e universal”. E o que é uma abertura de Jogos Olímpicos se não o esforço de fazer o regional, o geograficamente localizado, ser compreendido como mundial ou universal?
“No vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas seria preciso purificá-la de toda conotação polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro. Nessa correlação nada importa a identidade ou a pluralidade dos homens”
A partir desse excerto de Jorge Luis Borges, no texto Kafka e seus precursores, podemos dizer que os modernistas de 1922 não são em si precursores dos tropicalistas de 1967-1968. São os tropicalistas que colocam na ordem do dia o modernismo de 1922, e que determinam ali sua tradição. E, posteriormente, a memória que se cria da Tropicália. Uma linha do tempo, portanto, não se cria do presente para o futuro, mas sim do presente para o passado, com a ressignificação daquilo que passou.
Desse modo, falar em tradição, ao contrário do que possa parecer, não é tratar de fenômenos congelados no tempo e reproduzidos sucessivamente. Conceitos como “a invenção das tradições”, cunhado por Eric Hobsbawm, e “a tradição da ruptura”, de Octavio Paz, postos em diálogo permitem-nos pensar sobre a relação entre modernismos e nacionalismos, sem também desconsiderar a importância da inovação artística nos meandros das linguagens. É a ressignificação do Modernismo de 1920 por agentes na década de 1960 e ainda posta em prática em uma apresentação como a abertura dos Jogos Olímpicos na década de 2010 que nos permite apontar rupturas e continuidades nesses períodos.
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A incompletude da Semana de Arte Moderna de 1922 seria, na visão de Frederico Coelho, a sua força de nos fazer pensar sobre a modernidade brasileira que carregamos nos nossos imaginários (ajudada obviamente por livros didáticos, datas comemorativas, efemérides celebradas pelos jornais e órgãos de cultura e retomadas artisticamente ao longo do tempo).
Na abertura das Olimpíadas, muitos elementos de dita cultura brasileira estavam representados. Olhar para esse evento interessava porque tratou-se de um momento culturalmente relevante e com um claro aspecto oficial. Um momento em que uma instituição tão tributária do século XIX como os Jogos Olímpicos é colocada a se perguntar o que é Brasil.
Parece haver muito mais continuidade com 1922 e 1967 do que ruptura. Não apenas por questões contextuais da vida política brasileira, já que, em meados da década de 1960, Roberto Schwarcz escreveu um importante texto de análise sobre o panorama cultural do país entre o golpe cívico-militar de 1964 e o ano de 1967, em que apontava para uma hegemonia cultural de esquerda apesar do governo autoritário de direita.
Por ocasião da abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, o presidente-interino Michel Temer esteve presente no Maracanã, enquanto muitos dos artistas que ali se apresentavam já haviam se posicionado contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, à época ainda em suas etapas de apreciação pelo poder Legislativo. As continuidades, do ponto de vista artístico, estão sobretudo em uma primazia do século XX (o samba urbano, a bossa nova, o rap, a arquitetura, expressões concretistas da arte, a poesia de Drummond) e uma convivência com o tradicional de modo quase folclórico (o maracatu, a capoeira, as formas indígenas de construir habitação).
Na disputa das representações no âmbito oficial, e muitas vezes até bem longe da oficialidade, parece que o Modernismo consagrou-se como vencedor, porque, afinal, a ideia de ser modernista foi ampliada. Inexiste na apresentação da abertura das Olimpíadas a arte do século XIX, construções de arquitetura que não remetam ao moderno ou à gambiarra, identidades nacionais que fujam muito da relação festiva entre três etnias (a imigração mencionada aparece com aspectos específicos vinculadas a atividades econômicas e desaparecem no Rio contemporâneo). Gisele Bündchen, por exemplo, é a mulher brasileira de Ipanema; não é a mulher gaúcha, de sobrenome alemão, numa região que tem celebrações muito particulares como a Semana Farroupilha.
Com certeza, não foi em uma semana com apresentações artísticas em três dias que esse discurso se formou, mas a Semana de Arte Moderna tornou-se esse tempo-espaço quase mítico de encontro de Mário e Oswald de Andrade que proporcionou forjar-se um discurso sobre arte e Brasil que reverbera até hoje. E, que por mais que apresente pontos problemáticos diante da complexidade da vida, parece corresponder a um Brasil que gosta de si e que gosta de olhar para si mesmo. Algo que em 2020 beira o insuportável.
Referências
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