Sergio Chamy é um viúvo que decide responder a um anúncio no jornal para homens entre 80 e 90 anos. Vai parar no escritório de um detetive particular e acaba por tornar-se um espião em uma casa de repouso para idosos no Chile. Essa é a premissa do filme O agente duplo, que concorreu ao Oscar de Melhor Documentário (e perdeu para uma produção genérica estilo Animal Planet sobre um polvo-fêmea, trauma que não quero reviver neste momento).
Estimulado por uma nova atividade, depois de um período de luto pela morte da esposa e tédio pela rotina diária, Chamy comunica sua filha sobre a experiência de três meses para identificar se determinada cliente do asilo estava sofrendo maus tratos. Em poucos passos, o espião aprende a manipular objetos de espionagem e fica a par da sua missão. Por outro lado, a outra espiã do filme (a discreta diretora que não aparece em cena) preparou uma equipe de filmagem dentro da casa de repouso que faz os registros de Sergio e seus companheiros em seu dia-a-dia no lugar.
O filme – preciso dizer – é extremamente agradável, apesar do tema ser daqueles que costumamos desconversar quando surge. A velhice pode ser um aspecto incômodo da nossa presença no mundo. Desenvolver por uma vida capacidades físicas e mentais para, em algum momento, perceber que elas não são eternas. E, também, a dúvida de uma população que envelhece a olhos vistos: quem vai cuidar da gente?
Meus avós tiveram menos filhos que seus pais. Meus pais menos filhos que meus avós. E eu, provavelmente, terei menos filhos que meus pais. Essa é a tendência que vivemos. Tudo indica que viveremos mais do que nossos antepassados, o que significa dizer que seremos velhos por mais tempo. Apesar de uma romantização que chama de “melhor idade” esse período, o ato de envelhecer é um grande desafio.
O agente duplo, do documentário, se mostra um pouco desmotivado a seguir sua investigação quando descobre que a “abuelita” (é assim que eles se chamam no asilo, “vózinhas”) está sendo bem cuidada, mas não recebe visita de familiares. Muitos outros pacientes passam pela mesma coisa. Alguns sequer se lembram bem de seus parentes e, outros, já não tem lastros familiares. Uma das personagens mais carismáticas do filme tenta diariamente sair da casa de repouso e pergunta cotidianamente sobre sua mãe, possivelmente já falecida. Sergio tem menos vontade de conversar com seu contratante e muito mais ânimo em entender a vida de suas colegas – a maioria acachapante das moradoras ali são mulheres.
A presença daquelas senhoras ali está relacionada a muitas vezes não terem casado ou tido filhos, mas as histórias podem variar um pouco. Apartadas do convívio social, elas passam a pertencer a uma nova comunidade, na qual nem sempre podem exercer sua independência. Algumas apresentam quadro de esquecimento ou demência e precisam de um cuidado mais atento de enfermeiros. Nessa nova comunidade, há espaço para pequenas celebrações mas, ainda assim, nota-se uma solidão perene no olhar de muitos dos pacientes.
Curiosamente, nas últimas semanas, vi filmes em que a velhice é um tema. Às vezes de modo tangencial, como em Nomadland, às vezes de modo direto, como em Meu pai. Mas queria falar de Honeyland, que conta a história da criadora de abelhas Hatidze Muratova nas montanhas da Macedônia. Ali, muita coisa acontece. São as abelhas, os vizinhos, os mercadores. A festa na vila, o preço do mel, e a mãe, enferma, a ser cuidada dia após dia. Hatidze não se casou, não teve filhos. Coube a ela o cuidado de sua progenitora, em uma vida que parece ser também muito solitária.
O fato de não ter tido uma família para além da mãe aparece como um desgosto para Hatidze. Ela lida com animais extremamente sociais, as abelhas que constituem e reproduzem sua sociedade em colmeias, enquanto interage com poucos de nossa espécie. Em uma tradição não-escrita de muitas comunidades, coube a ela o cuidado dos pais em sua velhice. Ainda que não tenha sido a vida que ela mesma desejou para si, Hatidze cria relações significativas com outras pessoas no decorrer do filme.
Vendo esses filmes, percebi que a pergunta “quem vai cuidar da gente?” sobre nossa futura velhice, parece ser interessante de ser feita desde já. A pergunta carrega muitas questões dentro de si. Questões que envolvem o papel dos órgãos de assistência e seguridade social, por exemplo. Teremos dinheiro para cuidar de nós na velhice? Numa cidade como São Paulo em que viver em determinados distritos significa morrer em média 14 anos antes, o que significa envelhecer? O que significa pensar na velhice no meio de uma pandemia em que muitos idosos tiveram que ouvir que “morreria quem tivesse que morrer” (sem falar na queda da expectativa de vida neste último ano)?
E, num aspecto mais amplo, ainda cabe naquela pergunta a dúvida sobre onde e quem será nossa rede de apoio. Parentes distantes e seus filhos, uma casa de repouso, uma comunidade formada por pessoas que conhecemos, um filho único? Não há escolha certa nem sequer alternativa fácil. Mas, se a gente puder olhar para a velhice como mais uma etapa da vida, sem as camadas de tabu que a proximidade com a morte parece trazer, talvez sejamos capazes de criar caminhos que não sejam o do abandono ou da ausência de laços com outras pessoas.