corpo de quinta

Na quinta-feira passada, fiz uma fala sobre mulheres artistas no Estúdio Nu e aqui está a íntegra do texto. A foto é da Camila Fontenele.

É possível tensionar o mundo pelas palavras e, se levarmos adiante esse pensamento, é possível transformá-lo a partir de imagens. Na História da Arte, imagens e palavras andam juntas, numa construção de sentidos mas também de consagrações. Falar de mulheres nas artes é então falar sobre presenças e ausências, sobre visualidades e teorias. É falar sobre criação de mundos e também de limites desses universos. Falar de mulheres aqui será falar de mulheres que produziram imagens mas também de mulheres que me fizeram pensar sobre o tema do gênero nas artes.

Não é à toa que a maior parte das conversas sobre História da Arte Feminista começa com a pergunta posta em 1971 por Linda Nochlin no ensaio “Por que não houve grandes artistas mulheres?”. De 1971 para 2018 as coisas parecem ter mudado um bocado, mas essa questão ainda é central no debate sobre mulheres nas artes. Funciona antes de mais nada como uma provocação porque Nochlin é capaz de nos convencer de que o problema das mulheres nas artes nunca foi sua inexistência ou uma inabilidade biológica mas sim a dificuldade de acesso aos meios e ao cânone.

Linda Nochlin colocou em texto algo que anos depois as Guerrilla Girls colocaram em ação: escancarou a ausência da história de mulheres artistas como um vazio forjado. Muitas vezes forjado dentro de reservas técnicas de museus ou de compêndios de História da Arte. Uma ocultação que não é mérito dos nossos contemporâneos apenas, mas que percorre uma longa tradição. Nochlin no entanto adverte-nos sobre o problema de encaixar na narrativa da história da arte um punhado de mulheres excepcionais, porque isso periga em disfarçar os obstáculos enfrentados por todas que pretenderam ser artistas.

Eu me preocupo muito com o tema da narrativa na História da Arte ou na maneira como as histórias são contadas. A invenção do mito do artista genial e por desdobramento lógico do gênio sofredor quase nunca tinha como protagonista uma mulher. A História da Arte como disciplina foi talhada sobre as biografias de pintores e escultores feitas por Giorgio Vasari, na Renascença, mas as trajetórias engrandecedoras de artistas sofredores preencheram páginas e mais páginas de livros e manuais ao longo dos séculos. Não quero me estender nesse assunto, mas pensar em dois caminhos possíveis para romper com uma prática muito recorrente na História da Arte. O primeiro, apresentado a mim por Norbert Elias, é o de buscar entender a obra de arte não como um objeto autonomamente criado por uma mente fantástica, mas sim profundamente atrelado à sociedade a que artista e obra pertencem. O segundo, quem me apresentou foi a teórica Avtar Brah, que coloca a necessidade de pensarmos na agência dos nossos objetos de estudo a partir de relações sociais e experiências individuais que interagem de maneira complexa.

Ao nos confrontarmos com histórias de gênios excepcionais e de artistas que sofreram, há o perigo de colocarmos as mulheres artistas que conhecemos nessa mesma chave de interpretação. A pesquisadora Patricia Mayayo tem um importante trabalho em que tira Frida Kahlo – talvez o maior símbolo de mulher artista que foi incorporada ao cânone – desse lugar do sofrimento. A imagem de Frida está em absolutamente todos os lugares que pudermos imaginar, de capas de celular a desfile de moda. Ao contar sua história, muitos escolhem falar do aborto que sofreu, dos traumas e dores relacionados a um acidente de bonde e do relacionamento conturbado com Diego Rivera. O problema de só olhar para essa face, muitas vezes indicada por Frida em suas obras e em seu diário – publicado como fac-símile -, é perder todas as outras dimensões da artista: seu trânsito entre gêneros e orientações sexuais, sua inteligência em construir sua própria imagem e a de um México presente no imaginário de pessoas no mundo inteiro e seu círculo social amplo e agitado.

Avtar Brah gosta de pensar em um mundo em que o “eu” não é estático. Assim, a agência que as artistas mulheres tem varia dentro de relações sociais complexas, com diferentes elementos em ação (sua origem social, por exemplo, ou a época e o local em que produziram suas obras). Mas a gente só chega nesse olhar múltiplo sobre as obras de mulheres nas artes com pesquisa. E cada vez que a gente se debruça sobre as trajetórias dessas artistas mais questões parecem surgir.

No caso do Modernismo brasileiro, o cânone sempre contou com duas mulheres em um lugar de centralidade: Anita e Tarsila. É uma especificidade que chama a atenção, visto que das vanguardas artísticas europeias tendemos a lembrar de um punhado de nomes masculinos e raramente somos apresentados aos nomes femininos que produziram no mesmo ambiente que os homens. O problema é que a recepção das obras de ambas não escaparam de uma leitura feita através de seu gênero. Anita é lembrada como precursora do Modernismo no Brasil muito mais pela crítica que recebeu do escritor Monteiro Lobato em 1917 do que pela expressividade de sua obra. Um grupo de artistas aglutinou-se em torno de sua figura, com a liderança de Mário de Andrade. Na época, a maior parte das leituras feitas da obra de Anita, quando conseguia escapar da sua posição de vítima na Exposição de Arte Moderna, mobilizava atributos masculinos para valorizá-la. É interessante pensar, então, de que modo a entrada dessas mulheres artistas no cânone se deu e com que propósitos.

Vale mencionar, como apontou a tese de doutorado de Ana Paula Cavalcanti Simioni, que houve no Brasil mulheres artistas no século XIX, que realizavam obras dentro dos moldes ditos acadêmicos. Abigail de Andrade, Berthe Worms, Julieta de França, Nicolina Vaz e Georgina de Albuquerque são no entanto nomes difíceis de reconhecer porque essas artistas nunca tiveram atrelado a si o estatuto de profissionais, condenadas a serem eternamente amadoras. A tese de Simioni destaca o acesso desigual às instituições de formação artística e o papel da crítica de arte como formas de apagamento das 212 artistas que expuseram entre 1844 e 1922 em exposições gerais e salões nacionais.

Nesse afã de estudar os pontos-de-encontro entre a teoria feminista e a História da Arte, muitas coisas ainda me intrigam. Se nos últimos anos vimos um aumento, não só no Brasil, de exposições que tematizam a questão de gênero ao problematizar os números reduzidos de mulheres artistas nas coleções ou ao introduzir artistas aos corredores e galerias – uma transformação do conteúdo, enfim – pergunto-me quanto tempo ainda levaremos para uma radicalização da forma dos museus e outros espaços culturais. Pergunto-me quando as relações de trabalho dentro desses lugares serão favoráveis a todas as mulheres e não apenas àquelas que tem suas obras expostas. Pergunto-me quando os conselhos administrativos e curatoriais terão igualdade de gênero mas que não sejam apenas compostos de pessoas de mesma origem étnica. Porque falar de desigualdade é importante mas falar de acessos negados também o é.

Griselda Pollock no texto “Modernity and the spaces of femininity” coloca em discussão a experiência da cidade na modernidade, apontando a impossibilidade de uma flâneur feminina. O atributo do anonimato do caminhante citadino do personagem de Baudelaire era quase que por definição masculino, acentuando a dicotomia entre público e privado, onde a mulher só pertenceria à segunda esfera. Pollock sustenta o argumento ao analisar obras de artes feitas por mulheres e homens do mesmo período, como as de Mary Cassatt e Claude Monet. Se as mulheres de classe média “conquistaram” esse espaço público – lugar que nunca deixou de ser ocupado por mulheres trabalhadoras pobres -, pergunto-me em que medida museus e instituições culturais (para não dizer todos os ambientes que frequentamos) foram transformados pela presença feminina. Aqui, mais uma vez, penso nas relações de trabalho e de classe dentro desses locais. Quantas instituições culturais enxergam em sua força-de-trabalho a particularidade de seus corpos e experiências, como o ciclo menstrual e a maternidade, e quantas preocupam-se com o deslocamento desses corpos, em geral de bairros periféricos para prédios localizados em regiões privilegiadas das grandes cidades?

É também de Griselda Pollock alguns apontamentos sobre o papel do museu e sua relação com o feminismo no livro “Encuentros en el museo feminista virtual”. Diz a autora (tradução minha):

O museu na sociedade contemporânea está cada vez mais ligado aos circuitos de capital vinculados ao entretenimento, ao turismo, ao patrimônio, ao financiamento comercial e aos investimentos. Os homens ganham dinheiro às custas das mulheres e pagam dinheiro por elas; no entanto, o dinheiro não chega às feministas precisamente porque o feminismo, como Luce Irigaray argumentou, ocorre quando as mercadorias (mulheres, no sistema falocêntrico) rechaçam esses circuitos e criam uma sociabilidade e uma política entre elas.

A entrada de mulheres artistas nos museus corresponde a uma demanda social; ao mesmo tempo, pelo que aponta Pollock, os museus parecem espaços atrelados demais a uma determinada lógica de circulação de capitais para dar conta de romper com alicerces da desigualdade. Por isso, talvez, tantas iniciativas potentes do ponto de vista da arte contemporânea sejam pensadas fora ou além dos museus, com organizações coletivas (dividi a fala com YVY e #lambebuceta).

Mesmo quando as artistas não se posicionam como feministas, suas obras e trajetórias colocam a feminilidade idealizada em um lugar de desconforto. Algumas são mulheres que se apaixonaram por outras mulheres, que tiveram casos extraconjugais, que não tiveram filhos, que desenvolveram obras racionais e poéticas. Algumas deram vazão a seus anseios políticos através de suas obras, algumas nasceram homens, algumas colocaram diante do público suas ancestralidades e questões étnicas. Praticamente todas as artistas mulheres negociaram suas carreiras artísticas dentro de estruturas dominadas por pessoas que foram, por muito tempo, entendidas como o padrão de neutralidade, enquanto a maioria do mundo (não-homens, não-brancos, não-ricos) era vista como o exótico ou particular. Aos criar narrativas complexas sobre o mundo da arte e seus agentes, a História da Arte Feminista nos ensina a tensionar o mundo pelas palavras e ver sua transformação através de imagens.

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