Acordo do cochilo da tarde um pouco atordoada. Um mosquito no auge de sua atividade morde minha perna, coço-a e, irritada, decido sair do sofá. Vou até a cozinha, onde está minha avó, e pergunto se ela está ocupada para me ensinar a fazer a barra da calça nova que comprei. Não lembro a resposta, mas minutos depois está ela andando de um cômodo para outro, carregando a caixa de costura com as linhas, os alfinetes, a agulha e a fita métrica. Visto a calça por cima da bermuda — a calça é de um tecido quente e o verão ainda persistia naqueles fins de março — e minha avó tira as medidas. Acerta de um lado e de outro com os alfinetes. Puxa daqui, pergunta se está firme na cintura. “É bonitona essa calça, né?”, indago, quebrando o silêncio. Ela concorda e em seguida começa a dar os pontos. Eu fico olhando, esperando a hora em que ela vai me passar a agulha e me ensinar como fazer. Pede pra eu experimentar outra vez. A barra arrasta no chão, cobre todo meu tornozelo. Minha avó fala para eu tirar de novo para que possa arrumar, avisa que vai subir uns poucos centímetros, que não vai subir muito, afinal, só vou usar a calça com sapatos. Peço que me dê as ferramentas para eu mesma continuar a arrumar, enquanto ela toma banho e se arruma para jantar. Antes de me deixar na cozinha, me avisa que aquele ponto se chama espinho e que tenho que fazê-lo com a linha preta, porque ela tentou com a azul e chamou muita atenção do outro lado do tecido. Faz muito tempo que não pego uma agulha para coser. Quando era criança, pedi para ela me ensinar ponto-cruz e ficava ouvindo o telejornal na sala com meu avô enquanto bordava uma toalhinha para minha mãe. Minha mãe tentou me ensinar a fazer crochê, mas peguei gosto mesmo foi pela tapeçaria. Comprou três telas pequenas para mim, com desenhos de fachadas e os novelos de lã com as cores correspondentes. Para ela, comprou uma tela gigantesca, que se arrastava pelo chão, e os cachorros deitavam em cima, enquanto os pontos geométricos eram preenchidos incansavelmente. Originalmente, a tela dela era em tons de marrom, que foram alterados por linhas azuis em um fundo creme. Não sei quantos anos demorou para que completasse tudo aquilo e, para ser sincera, não estou certa de que um dia ela tenha terminado (me parece que sim, lembro de alguma celebração por isso, mas talvez muito mais tímida do que o feito de fato merecia). Enquanto penso nisso, sigo fazendo pequenos triângulos que segurarão as barras da calça nova. Olho para ela, é muito bonita mesmo. Alinhavo bem a barra, encaixo a agulha na posição certa. Dispenso a essa linha uma atenção que não sabia que era capaz de ter. Por ninguém. Quer dizer, não sei. Talvez eu tenha mudado nos últimos tempos. E tenho dado atenção a alguém, a você. Essa calça nas minhas mãos, por exemplo, me faz pensar em você, naquele dia em que te esperei sair do trabalho. Não te contei que estava ali justamente pra buscar na loja essa calça, nem a mostrei, quis guardar algo pra mim, só segurei sua mão, te beijei rápido — mas com saudade — e fomos para casa. Meu corpo, estranhamente, reage a essas lembranças. Eu te beijei rápido e devo ter sorrido como sempre acabo fazendo quando te encontro. Te olho nos olhos, ponho a língua entre os dentes e sorrio enquanto você fala algo, qualquer coisa, pra preencher o silêncio. A barra da calça é mais larga do que o resto da altura, como a parte que vai no joelho, por exemplo, e por isso parece que demora muito esse ajuste. Coloco uma música no celular, qualquer uma, só porque às 19h as motocicletas das pizzarias começam a cortar as ladeiras da zona norte com seus escapamentos desajustados. A linha da agulha acaba, meço por cima o tamanho, corto outro pedaço do novelo, passo pelo buraco e dou um nó. Retomo a costura encaixando a agulha por debaixo do último ponto dado no tecido. Patti Smith começa a cantar nos meus fones e volto a pensar em você. Come on now try to understand, the way I feel when I’m in your hand. Queria vestir uma camiseta branca e essa calça, amarrar minha bota preta de salto para te encontrar tão logo terminasse os ajustes. Take my hand come undercover, they can’t hurt you now, can’t hurt you now, can’t hurt you now. O tecido da barra da calça tremularia enquanto caminho com as mãos nos bolsos, como se eu estivesse segura e determinada e tudo o que parecia despretensiosa coincidência na verdade teria sido pensado, cada passo, cada movimento. Because the night belongs to lovers. Você apertaria seu corpo contra o meu enquanto mordisca meu pescoço, eu mais uma vez sorrindo, e pedindo para você me ajudar a desabotoar a calça. Because the night belongs to lust. Tento desvendar sua expressão facial e imagino sua desconfiança sobre até quando a gente pode continuar nessa, até quando a gente não vai se machucar mutuamente, até quando alguém de nós não vai sumir sem querer dar respostas. Because the night belongs to us. Sem alarde, seus dedos deslizariam do tecido ao meu púbis, a calça escorregando pelas minhas pernas, e eu já não pensaria em nada mais.