ao sul do escritório

Um escritório é um tipo de ambiente relativamente novo. Na minha família, a primeira pessoa a integrar um deve ter sido meu avô, em meados da década de 1960, quando se mudou para São Paulo. Mas foi um caso isolado mesmo entre meus antepassados, já que naquela época minhas duas avós trabalhavam como professora e lavadeira. Indo pra trás nessa história, sou capaz de chegar até a zona rural do norte de Minas ou do norte da Itália (Império Austro-Húngaro, pra ser mais exata) onde meus parentes desempenhavam seus trabalhos. Duvido que vieram para São Paulo sonhando com escritórios.

Um escritório é um ambiente reconhecidamente antinatural. Um espaço com temperatura regulável que gera micro atritos cotidianos entre aqueles que acham que está muito frio e aqueles que acham que está muito quente. O meio-termo é sempre o descontentamento de um dos grupos. Num ambiente natural, a sequência das estações, a previsão meteorológica e a possibilidade de transitar entre ambientes de sol e sombra causariam menos tormento. Mas a antinatureza do escritório, onde plantas minguam diante de luzes brancas, não permite esse tipo de arranjo.

Um escritório geralmente expressa um duelo ferrenho entre temporalidades diversas. Um duelo basicamente entre tecnologias de ponta, máquinas com bons processamentos, banheiros com descargas automáticas, entradas com liberações biométricas e tudo aquilo que a gente aprende do auge do capitalismo dos séculos XIX e XX (a produtividade fordista, a ética protestante e a mais-valia torando). O doido é que um escritório é quase um espaço atemporal que representa a si mesmo como sendo idêntico a todos os outros escritórios que você já adentrou.

Desde que assisti a Severance (ou, em português, Ruptura), não paro de pensar em tudo que escritório representa para mim. É a fronteira final do controle do meu tempo, mas também do meu corpo e da minha mente. Dentro do escritório, todos os dias, meu corpo deve se portar do mesmo jeito, pouco importando se ele preferisse estar nadando, estar sob uma árvore ou com uma bolsa de água quente sobre a minha barriga. Minha vontade de comer deve aparecer preferencialmente no mesmo horário, minha pressão não deve cair depois do almoço e minha cólica deve ser controlada mensalmente com analgésicos.

Em Severance, os personagens tem uma vida dupla, dividindo completamente seus “internos” e “externos” (qualitativos dados ao “eu” em relação ao escritório). Separar a vida pessoal da do trabalho parece bom e horrível ao mesmo tempo. Te poupa de pensamentos ruins da vida no ambiente de trabalho, ao mesmo tempo em que poupa levar trabalho pra casa, ao mesmo tempo em que seus laços com as pessoas do escritório ficam restritos ali, ao mesmo tempo em que nada faz muito sentido pois um terço da vida a pessoa passa dentro de um cubículo com 3 semiconhecidos. Talvez por isso um dos personagens mais cativantes da série é o Milchick (interpretado por Tramell Tillman): alguém igualmente disposto a sorrir e agradar aos do entorno quanto a obedecer seus superiores e punir seus subordinados.

O escritório de Severance é como qualquer escritório, da ficção ou da realidade (de Mad Men a The Office, passando sim por Os Aspones). Então, qualquer pessoa que frequente um escritório é capaz de entender aqueles sentimentos. Afinal, o escritório é o lugar para onde você vai alguns (muitos?) dias na semana em que todo mundo está fingindo ser mais ou menos outra pessoa – alguém mais talentoso, ou mais sociável, ou com menos opiniões e demais variações sobre esses mesmos temas. As tarefas podem até ser mais satisfatórias do que decidir se uma combinação de números é desagradável, mas elas podem ser igualmente misteriosas ao final do dia. Perguntas iniciadas com porquês, pra quês ou pra quem perigam brotar entre uma ou outra viagem de elevador ou um happy hour ao som de “jazz desafiador”.

Severance é muito eficiente, portanto, em criar uma ponte com o real. Seja pelos corredores que as pessoas nunca percorrem para conhecer os demais setores das empresas em que trabalham, seja pela sala de descanso que todos dizem que é melhor não utilizar. Mas não é só com o real que a série, cuja primeira temporada terminou há algumas semanas, se relaciona. Ela também se associa ao fantasioso. Ela poderia ser, afinal, uma citação ao conto El Sur, de Jorge Luis Borges.

Nessa história, Juan Dahlmann, seu protagonista, sofre um acidente dentro da biblioteca em que trabalha. Em uma narrativa que confunde o leitor sobre ele estar ou não no leito de um hospital, Juan retoma para si as paisagens do sul bonaerense no qual fora escrita a história de sua família. Francisco Flores, avô de Dahlmann, teria morrido lutando nos pampas. Como se fosse demasiado triste viver no ambiente asséptico de um hospital, com suas máquinas que apitam, suas luzes brancas e seus funcionários uniformizados, Dahlmann (que carrega no nome a dualidade de ascendências germânica e criolla) inventa para si um desfecho com muito mais bravura. Ao invés de morrer tropeçando no trabalho, romantiza sua morte como a de um duelo de faca entre gauchos. Sua vida interior e sua vida exterior já não se comunicam. Enquanto passara os dias fechado no ambiente também pretensamente atemporal da biblioteca, Juan Dahlmann gestava em si imagens heroicas em que o sol lhe tocava a pele e ele se reencontrava com uma vida rural – e muito mais emocionante – de seus antepassados.

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