a terra dos nômades nos escombros do capital

Como uma cidade desaparece do mapa?

Essa é a história de fundo de Nomadland, filme dirigido por Chloé Zhao e protagonizado por Frances McDormand. O filme caminha entre fronteiras, sobretudo sobre o que é ou não a realidade. Ele parte de algo que de fato aconteceu: o CEP de Empire, cidade em Nevada, deixou de existir nos correios. Ao mesmo tempo, trata-se de uma história ficcional. Só que os personagens são majoritariamente não-atores interpretando suas próprias histórias.

Criada em 1923 para abrigar funcionários da indústria, a cidade foi perdendo seus habitantes (sua escola foi perdendo seus alunos) com a recessão econômica pela qual os Estados Unidos passaram na década passada. Muitas cidades já desapareceram. Estou lendo Viva, México de Alexandra Lucas Coelho e penso nas ruínas de Monte Álban ou de Tenochtitlan. Uma cidade pode desaparecer por uma catástrofe como em Pompéia, mas também pode simplesmente sumir com o fim de uma atividade econômica na região.

Uma cidade são as pessoas dessa cidade. Não são as construções em pedras vulcânicas que resistem a séculos ou milênios, seus prédios e avenidas. A cidade é composta pelas vidas que nela habitam e a entendem como um espaço e que criam ali laços de comunidade (ou, às vezes, negam ali laços de comunidade com as outras pessoas com quem dividem o espaço).

Em Nomadland, Fern sai da cidade em sua nova casa: uma van. E é nessa van que ela encontra – ou compõe – a terra de nômades que dá nome ao filme. Em suas casas a gasolina, esses nômades formam uma comunidade. Encontram-se eventualmente para uma espécie de festival, com dicas para a vida na estrada e falas de auto-ajuda. A liberdade de viver sobre rodas – tema abordado à exaustão na cultura estadunidense – é dúbia, porque não é mero fruto da vontade individual. Empobrecidos, envelhecidos, sem um imóvel, ou laços com suas famílias, adoecidos numa sociedade que não oferece acesso gratuito à saúde, os personagens encontram na estrada uma saída. Talvez a única.

Essa saída, através do olhar de Chloé Zhao, é retratada de forma bastante digna. Não há qualquer traço de julgamento sobre aquelas pessoas, errantes por paisagens desérticas, mas que criam laços com desconhecidos estacionados ao lado. Os lindos cenários externos, inclusive, contrastam com os claustrofóbicos espaços internos, mesmo aqueles gigantescos. Passeamos por galpões da Amazon e assistimos a Frances McDormand com um de seus colegas de elenco fritando hambúrguer. O mundo do trabalho que constrói e destrói cidades alimenta-se da mão-de-obra desses nômades.

Em ocupações de temporada, juntam o que podem, mas dificilmente o bastante para comprar uma casa, sustentar uma família, financiar o tratamento de uma doença crônica. Em duas ocasiões, adentramos as casas das famílias de Fern e de seu colega na lanchonete. Espaços que reproduzem todas as expectativas sobre o que é ser bem-sucedido nesse mundo em desintegração. Na trajetória do filme, essas figuras sedentárias são as mais irreais, desconhecedoras das vivências profundas dos outros personagens, e das possibilidades que efetivamente oferecem para eles.

Esse mundo do trabalho de Nomadland também é retratado no brasileiro Arábia. A história de Cristiano é a história de sabe-se-lá quantos brasileiros que mudam de paisagens apenas em busca de um trabalho. Não um posto numa grande agência, um cargo melhor em um banco. Não. É outro Brasil. De um homem que trabalha no campo, na fábrica e na metalurgia. Não possui nada, apenas seu corpo, que carrega de cidade em cidade dentro do estado de Minas Gerais. Coincidentemente, Cristiano encontra sua última pousada na região onde também cidades desaparecem pela força destruidora da ganância do capital.

Assim como Fern, Cristiano em sua jornada ama, sorri, cria laços com seus companheiros. Descobre meio sem querer que o sindicato que poderia ajudá-los está cheio de pelegos, completamente desarticulado da vida dos trabalhadores que representa. Lembro de na época em que vi esse filme ter pensado em como a visão do mundo trabalho dos diretores e roteiristas Affonso Uchôa e João Dumans se diferia do canônico Eles não usam black-tie, mas isso é outro assunto.

No fundo, nem em Arábia nem em Nomadland, há qualquer solução à espreita. Mas, o mais estranho é que nos dois filmes há um sabor agridoce que persiste depois que a história acaba: ao mesmo tempo em que o mundo retratado neles é horrível, a vida em suas minúcias, em seus encontros, em suas trocas mais banais é a única coisa que parece valer verdadeiramente a pena.

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