Eu tinha 13 anos de idade quando minha mãe decidiu que passaríamos os dias depois do Ano Novo em Matutu, um vilarejo na cidade mineira de Aiuruoca. Chegamos no carro 1.0 à pousada, depois de um grande esforço para subir uma dessas serras de Minas Gerais, em que o carro derrapa pela chuva de verão que chegou pouco antes que a gente. O lugar não tinha televisão e eu passei a maior parte do tempo lendo O mundo de Sofia enquanto minha mãe avançava em sua tapeçaria. Em algum momento, chegaram três mulheres, já na casa dos trinta anos, em um carro 4×4 para se hospedar no quarto ao lado e nos chamaram para um passeio pelas cachoeiras no dia seguinte. Descobrimos que havia festa de Reis na casa de um dos moradores do vilarejo e alguns dias depois estávamos nós todas subindo mais uma daquelas serras, dessa vez a pé. A festa era feliz e colorida. Lembro que não conseguia entender se as figuras que brincavam com máscaras pretas me assustavam ou me encantavam, naquele fim de infância em que parece já não fazer mais sentido temer figuras fantásticas encarnadas em corpos humanos. Do alto do morro, víamos a imensidão verde e pessoas comentavam a chegada de uma hidrelétrica por lá. Eu tentava imaginar a água tomando tudo abaixo.
Começou a escurecer e eu pedi para minha mãe para voltarmos à pousada. Ela assentiu e fomos à descida antes que a chuva começasse. O problema é que ela nos alcançou na metade da trilha e eu, apavorada, me perguntava se tudo bem evocar preces a Santa Bárbara, protetora das tempestades, se já naquela época eu não rezava mais. Por via das dúvidas, desci balbuciando e chegamos à área sem árvores a tempo de ver o arco-íris mais completo da minha vida. Depois do encantamento, me dei conta de que pegamos um caminho diferente para descer e, por isso, demos de cara com uma cerca, uma casa, e um cão protegendo-a. Nós duas concordamos e invadimos a propriedade alheia, fazendo reverência pro cachorro que nos observava, e cruzamos até chegarmos ao carro.
Todas essas lembranças me vieram à mente logo depois de assistir ao filme
Livre. E faz muito sentido.
Eu – e possivelmente outras pessoas – não estou acostumada com narrativas sobre mulheres viajantes. E eu sei que elas – nós? – existem. O filme foi produzido e protagonizado por Reese Whiterspoon e conta a história de Cheryl Strayed em sua jornada, baseado em um livro autobiográfico. Pra mim, Reese Whiterspoon era uma atriz meio xis, vencedora do Oscar por um filme que nunca vi, marcada pela personagem Elle Woods de
Legalmente loira, nascida no sul dos Estados Unidos, e criadora de uma
loja online inspirada na vida campestre sulista. Meio cansada da ausência de protagonistas femininas marcantes no cinema, Reese produziu em 2014 dois filmes bastante comentados:
Livre e
Garota exemplar.
Em
Livre, há uma personagem que viaja em busca de sabe-se-lá-o-quê e uma relação de mãe e filha que tem visões de mundo diferentes (mas que não reproduzem matriz clássica edipiana – muito menos na sua versão psicanalítica do século XIX). Tem também uma mulher que respira aliviada quando momentos de tensão se diluem e permite que sua audiência saia da paralisia que o medo causa. Sinto ainda que o filme de alguma forma mostra que acreditar que a maioria das pessoas é boa (algo com que eu me acostumei lá em Matutu, andando com a minha mãe por caminhos terrosos) é a única crença que permite à gente encontrar coragem quando sozinha.
PS: O título original do filme é Wild, o que traduziríamos automaticamente como Selvagem em português. O problema é que a idéia de Wilderness em inglês e principalmente nos Estados Unidos é algo muito particular da identidade coletiva (basta pensar em todos os filmes e livros como Na natureza selvagem, Walden, On the road em que a busca por nada em específico com uma ida à natureza é o mote central). Por isso, a palavra “livre” pode dar uma errônea dimensão de valor moral da personagem, em comparação com a resto dos seres humanos que não largaram tudo e foram viajar (o que pode ser um conselho bem tosco; aqui traduzido pro português); a graça é então não entender a protagonista como “mais” livre perante os “menos” livres e sim como alguém que de algum modo se liberta em um processo pessoal que, nesse caso, era uma viagem por um parque nacional.
0 resposta para “a maioria das pessoas”
eu já tava com vontade de ver esse filme, depois do seu post então, aumentou ainda mais! adorei
eu li o livro e estou com medo de ver o filme e me decepcionar… mas depois do que você falou, acho que vou dar uma chance. :)adorei o relato da sua viagem! fiquei curiosa pra saber mais. realmente deviam ter mais histórias de mulheres viajantes por aí, não é mesmo?
História linda… e uma ótima forma de indicar filmes! ADOREI! :DP.S. saudades daqui!
nunca vi o filme mas agora fiquei com curiosidade