a humanidade de judas

É Páscoa.

Fui uma criança de igreja, e, também, uma criança que não gostava de doces. Então a Páscoa era um feriado menos proveitoso que Natal, embora ainda a entendesse melhor do que o Corpus Christi. Com a passagem do tempo, fui simultaneamente me afastando de minha formação católica e aprendendo a gostar do significado da Páscoa. Eu entendo se soar estranho. Mas um ritual de morte e renascimento marcado em um calendário lunar me leva a reflexões – profundas e até involuntárias – sobre a falta que isso faz no tempo linear que habitamos.

A ideia de que a cada novo ano possamos renascer e fazê-lo por bons motivos e através de bons sentimentos (humildade, amor ao próximo, caridade, fraternidade) é realmente potente. E quanto mais distante me vejo do cristianismo como prática institucional mais me interesso por ele como elemento de coesão em algumas comunidades. Talvez seja fácil pensar em um fundamentalismo cristão e branco e rico, mas não é sempre assim. Pode causar até estranhamento pensar em quantos movimentos sociais na América Latina tem e tiveram um lastro profundo com o cristianismo. Se na Europa do século 19, ideologias de igualdade foram forjadas em oposição à religião, neste continente as coisas não foram tão simples.

Todos os anos, nessa época, me vejo pensando nessas coisas ou, no mínimo, assistindo a Jesus Cristo Superstar, filme baseado na ópera-rock de Andrew Lloyd Webber. No entanto, dessa vez, quase não reparei que estávamos próximos da Páscoa. Há mais de um ano, todos os dias são quase o mesmo e, em casa, quase sempre sozinha, posso ser convencida facilmente de que 30 de março é 15 outubro.

O que me fez pensar “eita, semana que vem é Páscoa!” foi ter assistido ao filme Judas e o Messias Negro. O filme não tem nada a ver com religião no sentido estrito do termo. Dirigido por Shaka King, e concorrendo ao Oscar de Melhor Filme em 2021, conta a história de Fred Hampton e William O’Neal. O primeiro, líder do Partido dos Panteras Negras em Chicago, Estados Unidos. O segundo, um ladrão de carros, feito informante do FBI, infiltrado no partido.

A metáfora é perfeita. Mas também muito perigosa. É temeroso comparar narrativas e perder as particularidades históricas. Fred Hampton e os Panteras Negras são protagonistas de um luta real e com contornos específicos, com objetivos bem delimitados e adversários bastante conhecidos. Num Estados Unidos marcado por séculos de segregação de brancos e negros, num período de ascensão de movimentos de contestação. A partir daí, vale perguntar: de que Judas estamos falando quando O’Neal é colocado nessa posição?

Judas Iscariotes era o apóstolo que entregou Jesus em troca de trinta moedas de prata para os romanos que ocupavam militar e politicamente a região da Judeia, que hoje conhecemos como Palestina. O símbolo mais forte dessa traição na nossa tradição deve ser a anual “malhação de Judas” que educa gerações na máxima “X9 morre cedo”. Mas essa imagem de Iscariotes (e de justiça), porém, me interessa pouquíssimo.

No musical dirigido por Norman Jewison, Judas também é um homem negro (assim como poderia ser Jesus que originalmente não devia ter nada de caucasiano). Mas tanto ele quanto O’Neal não são simplesmente traidores. Eles existem em um contexto de controle e de dominação. Os dois se aproximam dessas figuras revolucionárias (Jesus, Hampton) e se enxergam em seus ideais.

Iscariotes, apesar do amor que tem por Jesus, espera dele mais esforço em sua revolução, mais ação contra o poder instituído. Entretanto, Jesus se contenta em brigar com os mercadores do templo, amparar uma mulher do apedrejamento e de substituir os mandamentos do Antigo Testamento por uma mensagem de amor ao próximo. O’Neal, por outro lado, desempenha no filme um papel de agente duplo. Mas, ao mesmo tempo em que informa ao oficial branco sobre os meandros internos da associação, começa a desempenhar um papel importante entre os Panteras Negras, ajudando em suas ações e articulações políticas com brancos pobres, outros negros e porto-riquenhos, inclusive quando Hampton está preso.

Os dois filmes de alguma maneira humanizam o “judas” de suas histórias. Enquanto Judas Iscariotes percebe ter sido parte do plano de Deus para remissão do pecado de seu povo através do corpo imolado de seu filho, O’Neal é lembrado o tempo todo que sua vida vale pouco para o oficialato branco. Ele sabe, inclusive desde antes de ser instado a colaborar com o FBI, o valor que um distintivo pode ter nessa sociedade. O desfecho trágico de ambos, que encerram suas vidas num suicídio, é visto como demonstração de arrependimento. Suas ações individuais foram, obviamente, decisivas na execução de seus companheiros. Mas é importante entender o que está por trás – indivíduos racistas com poder no Estado, narrativas de caça a comunistas, ocupação territorial, receio de perda de hegemonia de outros líderes – desse suposto livre-arbítrio de Judas.

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