Eu sentia que aquelas coisas me pertenciam, mas de um jeito muito estranho de posse. Elas eram importantes mas distantes, ou, de modo mais preciso, elas só diziam respeito a mim na mesma medida que todas as camadas de tempo dizem. Às vezes eu andava por Berlim e achava que estava em Buenos Aires e me sentia uma espécie particular de adúltera, porque traía a companheira daqueles dias pensando num amor distante e não na cidade com que tenho compromisso. Mas Vivian um dia abriu a janela e sentiu o cheiro de Santiago. Nunca entendemos o porquê disso, mas nos entendemos na estranheza. Há talvez algo especial em ser americana, em ter que dar conta da História Universal e do máximo possível de suas variações. Sem nenhum ufanismo nisso. Inclusive a forma mais prática de tornar qualquer identidade fluida e de chamar qualquer nacionalismo de estúpido.
A noite anterior foi das mais enigmáticas porque, ao andar na rua, numa sexta-feira em um dos lugares mais agitados do mundo, passamos por um homem que nos empurrou com o corpo, encarando-nos com o cenho franzido, deixando atônito o grupo quase completamente composto por latino-americanos conversando efusivamente em espanhol. Poucos metros depois, uma garrafa d’água foi jogada de um prédio em nossa direção. Eu já não conseguiria me divertir. Eu pensava nas famílias invadindo os trens no Mediterrâneo torcendo para nenhum guarda revista-las. Eu lembrava da conversa que tivemos no forró, dois dias antes, sobre o tunisiano que foi parar num campo de imigrantes e como sua liberdade era condicionada e restrita. E se eu penso agora naqueles dias, me ocorre dizer que eram os dias de paz antes da guerra. Mas não eram. O medo que senti no enfrentamento – nunca explicado mas muito suposto – numa rua qualquer de Berlim me fez lembrar da menina que chorou ao ouvir da chanceler que nem todos poderão entrar ali. Naqueles dias, as manchetes eram dominadas por líderes mundiais discutindo a bolsa de valores da China e os europeus trocando acusações sobre quem devia ou não ter mais compaixão. Naqueles dias, havia corpos naufragados, mas não existia ainda o ícone do menino sírio na areia de uma das praias.
No caderno de viagens que tenho ao meu lado, escrevi que “parece muito recente pra Alemanha mas pro mundo também essa insana quantidade de turistas que aqui se acumulam. Em séculos de fomes e pestes e de transporte marítimo e de guerra total e de guerra mental não parece nada razoável um trânsito de pessoas apontando admiradas para conjuntos de pedras empilhadas. Mas a se considerar meu prazer pessoal com exercícios de anacronismo, me pergunto se a fluidez de certas fronteiras, o contato e o intercâmbio entre tantos povos (muitas vezes falsamente entendidos como antagônicos) não tem paralelo com o Império Romano [Ou com o Sacro Império Romano Germânico?]”.
Se na periferia do mundo (oi, a gente) existem seus centros, não é de se estranhar que no centro do mundo haja tantas periferias. Ali, pessoas também remexiam o lixo à procura de comida, também pediam esmolas em línguas que eu não sei falar e fizeram pensar como se sobrevive no inverno. No centro do mundo, na Marcha da Maconha de Berlim, pequenas bandeiras do Uruguai apareciam como ideia de um exemplo a se seguir. Mas se andei por Berlim pensando na capital nacional argentina, a verdade é que no percurso só me ocorria cantarolar Nação Zumbi porque “andando por entre becos, andando em coletivos, ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown”.