o que cabe num território

mão com urucum aberto

O que é um território? Eu me mudei para um apartamento de 30 metros quadrados. Alguém poderia dizer que esse é meu território. Mas ele é muito maior que isso. A água que me serve e me sacia vem de um reservatório, percorre quilômetros de canos até chegar nas torneiras de casa. O espaço dessa água é também meu território. Os lugares onde desempenho atividades de lazer ou de trabalho são meu território. Se eu tivesse uma religião, o lugar onde eu me conectasse com o sagrado seria parte do meu território. E os lugares de onde vêm as comidas que me alimentam são um pedaço de terra que me garante sobrevivência. Isso tudo mesmo que eu nunca possua esses espaços.

Nas minhas férias, fui para o Vale do Ribeira, uma região do estado de São Paulo normalmente referida como a “mais pobre” dele. É a região que tem a maior parte de Mata Atlântica preservada no estado e a maior quantidade de quilombos. E por isso pensei muito sobre o que é um território. É só a casa da gente ou é um espaço grande, como o da roça, o da floresta, da nascente do rio, da colheita de sementes? Território como espaço de moradia, somente, não faz sentido e foi nos poucos dias visitando quilombos que isso ficou mais evidente.

mulher segurando muda de palmeira na mata atlântica

Estive no Quilombo Nhunguara, mais especificamente no Viveiro Sítio Pedra. A comunidade quilombola se estende pelos municípios de Eldorado e de Iporanga, ao sul do estado de São Paulo. A origem dos bairros que o forma remonta à época do Brasil colonial, com os ciclos de mineração e, mais tarde, no ciclo de plantio de arroz.

A região, portanto, foi construída (assim como o país todinho) a partir da mão de obra de homens e mulheres escravizados, geralmente pessoas negras. “Comunidades remanescentes de quilombos” é o nome que hoje recebem os espaços que abrigaram as pessoas que fugiram ou foram libertadas na época da escravidão. E eles são juridicamente reconhecidos pela Constituição Federal de 1988, dentro do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

semente de feijão pra muvuca

A luta por terra no Brasil é urgente, necessária e, como sabemos, já dura séculos. Apesar de ainda não ter sido titulado, o Nunhguara foi reconhecido em 2001 como comunidade remanescente de quilombo. Naquela época, mais de 90 famílias habitavam o território. A maioria das pessoas lá são agricultores, que tiram seu sustento das roças. No Viveiro, eles cultivam árvores nativas da Mata Atlântica e vendem para pessoas interessadas em reflorestar seus lotes (seja por vontade própria, seja por compensação a infrações ambientais). Ali, também há uma casa de sementes que me deixou fascinada e que é resultado do trabalho de pessoas de outras 4 comunidades quilombolas da região. Essas sementes são usadas para compor a muvuca, e garantem a recuperação de solos devastados.

Muita gente acaba tendo a impressão de que comunidades remanescentes de quilombos são territórios afastados e praticamente apartados. A ideia que quilombos eram espaços de resistência ao sistema escravista pode dar a errônea ideia de que não havia contatos entre esses lugares e as cidades, as fazendas, e até aldeias indígenas. Mas as plantas, as verduras, os legumes, as frutas que saem do quilombo chegam a outras paragens (chegam inclusive à maior cidade da América do Sul). E isso acontecia até mesmo na época da escravidão.

sementes brotando no viveiro

O território de um quilombo não é só a terra onde se planta ou a casa em que se vive. O território, estipulado na própria Constituição, deve ser amplo o bastante para garantir a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade. Se uma divindade importante para a comunidade se manifesta nas árvores ou nas águas, elas são partes fundamentais ao território.

No fundo, foi a concepção de território aplicado aos remanescentes de quilombos que me faz entender o que é meu território na minha cidade. E, certamente, não são só os 30m² que chamo de casa.

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