Cômoda nova, quatro gavetas

Eu não devia falar dessas coisas. Já passa da meia-noite, seguro. A gente chegou em casa era o quê, onze-e-meia, né. A gente entrou num show de rock sem ingresso porque eu disse “se a gente quiser, agora dá pra entrar”. A moça que cuidava da entrada estava no telefone e quem tinha os ingressos já estava num entra-e-sai. Eles foram na minha frente, o que é completamente impróprio porque eu, ao fazer coisa errada, já dou logo um sorrisinho de quem faz coisa errada. Tentei contrair os músculos, seria patético dar a ideia e afundar os planos. De qualquer modo não nos pegaram, ouvimos ainda três músicas. Voltamos para casa. No meu quarto, uma cômoda esperava para ser montada e foi aí que comecei a pensar nas coisas todas. O silêncio da noite sempre foi acolhedor para essas atividades manuais. No silêncio da noite, já escrevi histórias, fiz desenhos, costurei animais de pelúcia. Agora giro uma chave Philips com a palma da mão. Já deve ser mais de uma da manhã, porque as janelas do prédio da frente estão quase todas apagadas. No sétimo andar alguém está acordado, o cara do quinto continua pondo roupa para lavar a essa hora e parece que no primeiro dormiram assistindo programa de culinária. Mexer com a madeira assim me lembra do meu avô, me lembra de mim moleca serrando coisas, ouvindo o tempo todo “não mexe nisso que machuca o dedo”. Machucar mesmo o dedo era quando entrava farpa, três dias com aquilo dentro, até não aguentar mais e minha avó pegar a agulha e enfiar nessa camada primeira da pele pra tirar a lasquinha. Meu avô teria levado pouco tempo pra montar a cômoda e ainda passava uma mão de verniz. Eu ainda tô me fazendo, vô. Um parafuso para de rodar, por mais força e jeito que eu tenha (não tenho), o que faz com que eu me pergunte como que em um grupo de parafusos iguais enfiados em buracos cortados na mesma máquina a laser (o queimado da madeira me leva a crer que é assim que fazem os furos), alguns funcionam e outros não. Eu persisto até o cansaço (que vem rápido). Pulo para outro parafuso. Esse vai. O problema não é a chave nem a mão que a roda. O problema é a junção das três coisas, meu cansaço, essa mania da minha cabeça não parar de abrir portas. Dispenso a estes pedaços de madeira uma dedicação que não sabia que era capaz de ter. Por ninguém. E isso me leva a pensar em você. Me leva a pensar se você é possível, se alguém é possível, mas se você é possível. Porque eu queria que fosse. Mas não queria me esforçar, nem queria que você se esforçasse. Força a gente usa para parafusar esses móveis, força pra levantar esse lado que vai se ligar ao outro lado e já é quase duas da manhã, força para não fazer barulho em cada um desses movimentos. Você é possível? Sem que eu te fale, será que você sente que no seu abraço meu corpo se amolece e espero que você decida o porvir? Vou girando o móvel calmamente na esperança de que todas as peças estejam juntas no final da rotação, ainda uso a roupa do show, uma bota, o jeans apertado e uma camisa elegante. O casaco sim tive a pachorra de tirar. Minha mãe dizia que roupa de criança tem que ser confortável pra criança poder correr, subir nas coisas, rasgar no joelho. Minhas roupas até hoje têm meio que ser assim porque vou querer montar uma cômoda à uma da manhã. É claro que é inapropriada a bota e que no dia seguinte as panturrilhas dariam seus gritinhos, enquanto a cômoda estrelava quase terminada no meio do quarto. Mas o problema mesmo é a palma da mão. O problema é que gosto de querer as coisas e gosto de fazer as coisas e gosto de começar e quando começo vou esquecendo de parar, até que um cansaço extremo me domina, escovo os dentes, tiro a bota, deito na cama. Eu penso uma última vez em você. E adormeço às três da manhã.


Esta crônica foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem.

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