a maldição do primogênito

O príncipe do Egito é um desenho animado lançado em 1998 sobre a história de Moisés, profeta fundamental para as principais religiões monoteístas do mundo. Quando o assisti pela primeira vez, aos 8 anos, tive uma experiência de ver um filme de terror. Enquanto o nenê era abandonado num cesto no rio e achado e criado pela família do faraó estava tudo bem. Mas o bicho pegou mesmo foi na parte das pragas que assolaram o lugar. Numa tentativa insana de libertar seu povo do cativeiro, Deus tingiu o Rio Nilo de sangue, mandou rãs, moscas, gafanhotos, piolhos, criou feridas em pessoas e animais e decidiu matar os primogênitos de cada família. Para se precaver dessa última, era preciso passar sangue de cordeiro sobre a porta de entrada da casa. Não sei o que eu devia ter aprendido na época, mas fiquei ressabiada com a indisposição dos meus parentes em tingir o batente com uma demão de fluido corporal de um pequeno ovino. Me senti insegura como filha, neta e bisneta mais velha da família. Passei noites esperando a misericórdia divina que, no desenho, parecia pouco abundante.

É por isso que há algo no personagem Connor Roy da série Succession que me desperta um tipo muito curioso de solidariedade. Uma solidariedade incomum, eu sei. Afinal, sequer sou capaz de vislumbrar alguém dizendo em voz alta: “Eu gosto muito do Connor e torço por ele!”, já que nem o próprio personagem torce para si mesmo na disputa pelo legado de Logan Roy, de quem é o filho mais velho. Quando precisa conquistar alguma coisa, pede um cargo em alguma divisão pouco importante da empresa. Passa seus dias numa fazenda em outro estado. Embarca em um devaneio megalomaníaco próprio (por que disputar o cargo de CEO da Waystar quando pode lançar uma candidatura independente à presidência do país?!).

Succession deve ser a grande série do momento. A que mobiliza fãs aos domingos à noite e os faz criticá-los à exaustão o aplicativo de streaming do canal que a transmite. Mobilizou também um chato debate sobre o método de atuação de seus atores, após a publicação de um perfil de Jeremy Strong. Apesar de se passar em Nova York, os personagens vão da Itália à Suíça, do Reino Unido à Hungria com muito mais facilidade do que eu tenho de ir da Vila Sônia ao bairro do Chora Menino. Nas redes sociais, é possível descobrir quanto custam os figurinos usados pelos atores e a maioria deles (exceto talvez as roupas do Primo Greg) nos faz entender quão ricas aquelas pessoas são (caso não tenha ficado claro quando o filho mais novo faz uma aposta de um milhão de dólares com uma criança no primeiro episódio).

Mas o charme da série não reside em suas paisagens estonteantes ou nas atitudes antipáticas de seus personagens. O encanto dela é o de não explicar quase nada. Um pai idoso, aparentemente doente. Logan Roy é um ricaço, em seu terceiro casamento, dono de uma imensa empresa de mídia, com quatro filhos (Connor, Kendall, Siobhan e Roman) muito dedicados em conseguir seu beijo de boa noite. Três deles dispostos a assumir cargos importantes do conglomerado no pai (todos, obviamente, nem sempre talentosos mas muito crentes que ali estão por seus méritos pessoais). Mas, depois de três temporadas, os dados que temos sobre a família Roy não ajuda na construção de uma história única. As histórias são fragmentadas pelas visões dos seus participantes nelas.

Um exemplo muito forte disso aparece ainda na primeira temporada. Roman, o filho mais novo de Logan, interpretado por Kieran Culkin, rememora os tempos em que seus irmãos o prendiam no canil e o tratavam como cachorro. Na época, ele teria 4 anos de idade e era forçado a comer a comida do animal. Kendall e Connor, seus irmãos mais velhos, garantem que Roman não apenas gostava, como pedia por isso (a comida de cachorro seria, na verdade, um bolo de chocolate). Roman não parece feliz com essa lembrança e conta como se a visse de forma violenta. O público nunca saberá de fato como a coisa aconteceu, mas é possível associar o evento à vida atormentada do personagem em seus relacionamentos amorosos e sua atração – sexual inclusive – por figuras dominadoras.

Provavelmente nunca saberemos de muitos outros detalhes mencionados pelos personagens da série. A vida com o pai autoritário, pouco preocupado com os efeitos de suas decisões sobre os filhos, quase nada afeito à ética em seus negócios aparece em memórias incompletas, superficiais. Talvez nunca saibamos também sobre a época em que Logan esteve com a mãe de Connor ou o que aconteceu com a irmã do poderoso chefe da Waystar, que é um tema tão sensível ao patriarca Roy.

Connor, na disputa pela atenção do velho bilionário, é o único com a postura de um homem já derrotado. No último episódio da terceira temporada, à mesa com os irmãos, precisou lembrá-los enfaticamente de que era o primogênito da família. O reforço perante os mais novos não aconteceu por achar que assim mereceria mais do que os demais. Importando-se tão pouco com essa competição sequer esteve presente com Kendall, Shiv e Roman para o embate mais categórico deles contra o pai. Connor defende sua posição de primogênito como uma forma de distinguir-se dos filhos de Caroline, a ex-esposa de Logan. E essa distinção é muito menos de caráter genético; ela se ancora basicamente na sua história. Na mesma conversa em que os lembra ser o filho mais velho, Connor diz que ficou três anos sem ver o pai. Mais uma informação completamente desacompanhada de contexto. Mas só ele viveu isso, enquanto os outros foram disputados por Logan para estarem com ele nos Estados Unidos (alienando-os do convívio com a mãe, nesse caso).

Nas duas primeiras temporadas, Connor era ainda mais periférico à narrativa, um inútil completo à trama principal dos golpes e alianças pelo poder da Waystar. Os irmãos demonstram pouca afeição a ele (na verdade, praticamente todas as pessoas da série demonstram porcamente qualquer afeição que tenham por qualquer outro ser humano). Mas, quando Roman precisa contar uma história bonita sobre o pai para uma revista, troca o personagem de uma pescaria – o irmão mais velho – para ter algo afetuoso para difundir na mídia. Kendall, em seu aniversário de 40 anos, cria uma sala de deboche em que pendura falsas capas de revista sobre os irmãos. Connor se irrita, avisa que só passou por aquela situação vexatória porque estava cuidando dos irmãos mais novos, e Kendall decide tirar esse pôster da parede (apenas esse, porém).

Eu consigo concordar que, até aqui, Connor Roy se apresenta como um dos personagens menos relevantes de Succession, pelo menos para sua trama principal. Um milionário isolado no meio-oeste dos Estados Unidos, investindo seu capital na futura escassez de água no planeta. Um homem apaixonado por uma dramaturga de teatro de vanguarda, julgada por seu passado como acompanhante de luxo. Mas sua principal função é ser o primogênito da família. Sua reclusão possivelmente significa a distância mínima aceitável que precisa ter para seguir amando (seja lá o que isso signifique) seus parentes mais próximos. A ponto de sua fazenda ser o cenário ideal, um campo neutro, para a terapia familiar que Logan prepara para seus filhos (que obviamente não serviu de nada pois era apenas um feito midiático, uma mensagem de acertos no meio de uma tempestade pública; o tal do “gerenciamento de crise”).

Connor talvez carregue a maldição silenciosa do primogênito, que não é aquela poupada com sangue de cordeiro. A maldição de ser um elo entre gerações e saber de histórias e ter memórias que não chegam aos mais novos do clã. O homem que não vai ver o pai por anos e ainda assim vai cuidar dos irmãos quando eles precisarem. O parente que estará presente mas só o bastante para não se ferir demais (outra vez?).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *