pitoresco: a fotografia no museu

A fotografia é hoje uma expressão artística consolidada, mas não foi sempre assim. Muitas vezes questionada em seu aspecto estético, sua entrada nos museus só começou nos anos 1940 e teve mais intensidade nos anos 1970 com a pop art e a arte conceitual. Neste episódio, o fotógrafo Hudson Rodrigues conta como foi entrar no museu com uma exposição individual em 2018.


Transcrição do episódio

Música de introdução

Bárbara: Uma pessoa, um sensor e a invasão da luz. Poucos segundos e dali surge uma fotografia. Criar uma imagem, hoje, pode estar à distância de dois movimentos com os dedos. E consumir essas imagens também. Mas a história dessa técnica é também a história da sua validação como arte. É a história de inúmeras reflexões sobre a captura do real, o aprisionamento do presente e o papel daquele que aperta o botão. 

Eu gosto de como a Susan Sontag em um tom de leve desprezo se expressa sobre a fotografia no seu ensaio Na caverna de Platão. Ela diz:

Recentemente, a fotografia se tornou quase tão amplamente praticada como uma diversão, da mesma maneira que o sexo e a dança – o que significa que como todas as formas de arte de massa, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como uma arte. É principalmente um rito social, uma defesa contra a ansiedade e uma ferramenta de poder”.

No decorrer do texto, Sontag é ainda mais dura com os registros fotográficos, principalmente quando usados como instrumento de dominação. Ela elenca um punhado de situações em que os fotógrafos – principalmente em zonas de guerra – estavam a postos para não interferir e nos legaram imagens de violências que, ao mesmo tempo em que oferecem denúncias e revolta, nos anestesiam diante das violações ali representadas.

Todas as fotografias seriam um símbolo da nossa mortalidade e o tempo seria o responsável por tornar até o mais amador dos fotógrafos em uma espécie de artista. Pra ela, nós fotografamos movidos pela nostalgia e criamos falsas presenças e monumentos de ausências. Tudo o que existe hoje existe para acabar em uma fotografia. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso que é registrado e fotografado representa um mundo em dissolução, em que diversas espécies, por exemplo, vão sendo extintas na mesma medida em que conseguimos chegar até elas e salvar uma imagem – talvez inócua – delas mesmas.

Susan Sontag publicou esses escritos em 1977, quando a fotografia já era viável como hábito de consumo para as classes médias de muitos dos países do globo. Um hábito menos frequente ou imediato do que hoje em dia, porque demandava a compra e a revelação de filmes, mas uma forma de registrar as viagens de férias ou então os aniversários da família. Em 1977, a fotografia já tinha entrado nos museus como uma expressão artística legítima.

Meu nome é Bárbara Carneiro e esse aqui é o Pitoresco.

Aumenta o volume da música e ela termina

Bárbara: As fotografias são documentos de suas épocas. Assim como tudo que existe, resiste, persiste no mundo. Mas a fotografia é um documento de sua própria história como técnica: das composições químicas das suas películas, da elaboração de suas lentes e até dos aprimoramentos de seus sensores digitais.

Talvez a gente imagine que a fotografia seja um documento mais importante do que outros porque ela aparenta ser um contato direto do presente com o passado, fazendo a gente se esquecer um pouco de que ela é um intermediário e, como tal, nos conduz por um caminho específico. Sobre isso, o historiador e fotógrafo Boris Kossoy escreveu:

A fotografia, por ser um meio de expressão individual, sempre se prestou a incursões puramente estéticas; a imaginação criadora é pois inerente a essa forma de expressão; não pode ser entendida apenas como registro da realidade dita factual.”

Então, a gente pode sair deste episódio com esse acordo, né? Que a fotografia não é um retrato fiel do real, porque, afinal de contas, em última análise todas as fotos são frutos de escolhas de enquadramento de alguém. E essa pessoa se posicionou diante do seu objeto, ela ajustou as configurações de iluminação e decidiu o que deixaria dentro do espaço disponível pra foto. Todo o resto do mundo ficou de fora.

Se a fotografia é enxergada por muitos como um retrato do real, pra ela ser aceita como expressão artística o caminho foi um pouco mais tortuoso. Desenvolvida como técnica no século XIX, foi lá pros anos 40 do século seguinte que os museus e galerias de arte começaram a legitimar as fotografias como objetos artísticos. Em um primeiro momento, essas fotografias adentraram instituições artísticas por seus aspectos formais em diálogo com a arte moderna daquele período. Nas décadas seguintes, foi o uso experimental da fotografia que abriu caminho para ela nesses espaços, com a versatilidade da arte pop e da arte conceitual.

E aí a gente chega até a uma contradição com os registros fotográficos de performances artísticas, que acabam sendo apresentadas como uma obra. Ali, a obra de fato não está presente. Apenas a sua lembrança, porque a arte em questão se propunha a ser algo único, no tempo e no espaço. Como a gente lida com a perpetuação de algo que deveria ter um fim em si mesmo? Ou como preservar a lembrança de algo que não existe mais?

Nas últimas décadas, a presença da fotografia em museus de arte se consolidou de maneira definitiva e até os trabalhos ditos jornalísticos ou documentais ganharam atenção e espaço em exposições. A discussão sobre se existia mérito para o fotógrafo como um artista, empenhado nas questões estéticas, ou se ele era apenas um viabilizador da foto através de um maquinário foi superada. E hoje em dia a gente conhece muitos desses artistas através de contas em redes sociais.

interlúdio

Foi justamente assim que conheci o Hudson Rodrigues, com quem eu converso neste episódio. Os nossos primeiros contatos aconteceram há mais de dez anos, pela internet, em interações nas fotos que tiramos pelas ruas da cidade. As fotos do Hudson, porém, saíram das ruas e entraram no museu. Em 2018, ele teve uma série fotográfica selecionada pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo e Bambas – que é essa série – foi exposta nas paredes da instituição.

Hudson: Meu nome é Hudson, sou fotógrafo, nasci em São Paulo, me formei em Design Gráfico em 2007 e a partir daí, depois que eu me formei, eu comprei a câmera que foi… não foi bem depois que eu me formei, demorou acho que uns dois anos ainda. E aí eu comprei a câmera e comecei a fotografar, né? 

Bárbara: E aí você começou a fotografar, tem uma caminhada aí e você foi parar no museu.

Hudson: Foi. Fui pro museu. A minha exposição minha foi em 2018. Então, pra você ter ideia, eu passei uns dez anos até eu ter minha primeira exposição individual, né? Fotografando e descobrindo as linguagens, o jeito que eu gosto das coisas, as estéticas.

Eu comecei fotografando na rua que é o que eu gosto. O que eu gosto assim… Acho que todo mundo quando começa a fotografar ele pega algum tema que já existia na vida dele antes da fotografia, né? Então, sei lá, cada um tem já os seus hobbies, as suas vontades e quando começa a fotografar acaba pegando esse universo. Eu era um cara muito da rua, né? Ficava muito na rua. E eu gosto dessa dinâmica da rua, assim.

Hoje eu tô mudando bastante, assim. Ainda bem! Eu acho que a gente não precisa ficar… ser a mesma pessoa. Eu acho que é impossível até, né? Como o tempo envelhece a gente e isso já é mudança, inevitável. Então, eu comecei pela rua mas hoje eu percebo que eu tô trabalhando na rua ainda, mas com uma forma um pouco mais diferente, com uma estética um pouco diferente, com um olhar voltado pra outra coisa que antes eu via outras coisas na rua. Mas eu acho que foi mais ou menos isso, assim, um resumão.

Aí eu passei no meio desses dez anos, aconteceu bastante coisa, passei por um coletivo aqui de São Paulo, que não existe mais, que foi o Selva. Tive uma exposição coletiva com eles no MIS. Então foi interessante porque no MIS eu expus de todas as formas, não tem mais como eu entrar. Porque eu entrei em coletiva e em individual, né? Então, ali eu já mostrei o meu trabalho. Agora é continuar, produzindo e pensando no que eu quero.

Bárbara: Como que surgiu a fotografia na sua vida? Você comprou a câmera, mas antes você já tinha interesse? Você já curtia o trampo de algum fotógrafo específico ou foi mais tipo “vamos ver o que dá pra fazer aqui?”? 

Hudson: Nada! A primeira pira que eu tive com fotografia eu acho que eu tinha uns 15 anos, 16… Mas foi uma coisa muito rápida. Aí com 19 essa ideia voltou na minha cabeça. Na época nem tinha digital, digital tava muito no início mesmo, sabe? Aquelas Sony com aqueles disquetes, era uma coisa muito no início. E aí, o que acontece? A fotografia foi uma coisa muito doida. Eu comprei uma câmera num dia, e eu fiquei meio com medo, sei lá, eu falei “meu, que que eu vou fazer com isso?”. Eu já sabia o que eu ia fazer mas eu fiquei meio paralisado. E aí eu devolvi a câmera. Vai vendo!

Eu fui na loja, devolvi a câmera, por esse medo, esse receio, eu não sei dizer o que que era na época, mas eu não tava à vontade. Eu devolvi a câmera e fiquei estudando 3 anos sem câmera. Estudando tudo, equipamento, fotógrafo, e me descobrindo, né? Dentro desse universo que eu já tava estudando. Então depois de 3 anos eu comprei a câmera. Aí eu me senti totalmente apto pra… seguro pra ir pra rua, ou fazer a foto que eu queria. Parecia que eu já tinha meio que me encontrado no ponto onde eu precisava. Eu falei “pronto, é agora!”

Então, de moleque, eu já trabalhei muito… Minha família é de músico, então a vida inteira foi muito rodada, rodada assim, meu meio muito artístico né? Acho que não tinha como eu fazer outra coisa. Eu sempre ia acabando indo pro lado da arte de alguma forma. Então, na época eu trabalhava na APAE, eu era auxiliar administrativo. Quando eu entrei na faculdade, eu pedi as contas. E aí eu fui moldando minha carreira, mas na verdade ela foi sendo moldada muito natural, assim. É claro que com uma força, um planejamento que às vezes é natural que você não percebe, mas você vai atrás, as coisas acontecem, entende?

Hoje, na idade que eu tô, eu aprendi umas coisas com a vida que é incrível, incrível. Porque quando você é meio mais jovem parece que a força de vontade, a disciplina e o fazer não vai te levar a lugar nenhum, mas é só isso que vai te levar aonde você quer. Pra expor também ainda mais nesses lugares você manda seu trabalho e ele precisa ser avaliado, né?

E isso eu acho muito bom, porque, o que acontece, a avaliação de profissionais hoje no mercado eu acho que é o que a gente pode ter pra conseguir buscar uma estética interessante, já que o instagram abriu umas portas maravilhosas, só que ao mesmo tempo ele destruiu uma forma de se criar uma imagem, de você elevar o seu nível. Porque, afinal, ele vicia… É uma plataforma que pra mim é muito ruim pro artista, tá? Porque, se você não prestar atenção você vai acabar, você vai se rendendo pra ele, e você deixa de ser artista porque você começa a entrar na fórmula que ele fala pra você “olha, isso dá certo”. E aí você perde a sua autoridade, isso de poder criar mesmo sem pensar em algum resultado.

Bárbara: … de descobrir mesmo, de experimentar.

Hudson: É isso, de experimentos. Eu acredito que se você for olhar alguns trabalhos de alguns fotógrafos, cara, a caminhada da estética de você chegar em um lugar é maravilhoso, porque… eu tava vendo uns filmes, um documentário de jazz que foi uma coisa que me ajuda muito. Eu adoro ver documentário de artista, porque aquilo me dá uma ânsia, aquilo me sustenta de disciplina, entende? Eles ficam 8 horas por dia atrás do jazz deles. E a coisa mais louca é que você começa a entender que você pode morrer sem encontrar seu próprio jazz. Encontrar seu próprio jazz na minha questão é você encontrar sua estética, é você conseguir criar esse universo interessante, sabe? Isso é um processo devagar, porque você vai se descobrindo e alterando, sabe? Isso eu acho muito foda.

Bárbara: E aí qual que foi esse caminho pra você chegar na série Bambas, que foi a série que foi exposta no MIS?

Hudson: Cara, como eu falei pra você: quando eu percebo as coisas estão na mão, sabe? Eu fui fazendo, fazendo. Eu sempre tive problema de trabalhar assim com alguma série, né. Como você acaba indo… eu fotografava muito na rua, se você prestar atenção, o assunto acaba sendo mais… ele é abrangente, né? Você não pega apenas um assunto e fotografa. A rua te dá vários frames de várias coisas, né? Existem várias formas de você poder dar uma narrativa pra isso depois. Só que eu me cobrava um pouco de “pô, eu não tenho nada contando sobre algo, parece que tá tudo muito jogado”.

E aí um dia eu tava olhando minhas fotos e eu comecei me reconhecer também, sabe? A mudança do meu bairro onde eu morava, aqui pra Vila Mariana, ele me jogou em questões sociais que eu acho que ali mudou, ali eu consegui ver o Bambas, quando eu percebi que eu não tava mais no lugar de onde eu pertencia, e quando eu volto lá parece que eu não faço parte de lá, mas eu também não sou aceito no lugar onde eu tô agora. Como eu falo, é meio que a terceira margem do rio, entende? A gente acaba virando.

Bem, e aí eu fui percebendo essas situações e aí foi quando eu fui descobrindo o Bambas, sabe? Quando eu fui olhando, você vai percebendo que você tem repetições de fotos que às vezes é um inconsciente que você não vê mas ele tá lá presente quando você olha as fotos, tem já essa linguagem, ela já tava lá meio já sendo preparada. Então quando eu olhei as fotos eu falei “mano, eu tenho um ensaio aqui sobre… sobre os meus”. Sobre eu, né? E aí foi super interessante, muito, muito legal, acabou me ensinando muita coisa, aprender ver as fotos de uma forma diferente. Mas o “Bambas” foi meio assim, sabe?

O MIS eu entrei mas eu fui gongado cinco vezes, entende? Isso eu acho muito importante, esse processo, entende? Da gongação. Então, eu acho assim, às vezes você percebe – ainda mais hoje – eu acho que os concursos são importantes para você ter uma avaliação profissional. É claro: você não precisa levar aquilo ao pé da letra caso você não passe. Mas é interessante! A reprovação faz você superar. Mas eu percebo que a geração nova não gostam de ser reprovados. De forma alguma. Então você percebe que a galera mais nova eles não mandam muito. Pelo menos o que eu percebo, o que fica em minha volta, eles não mandam muito porque ali é a comprovação do que ele acha maravilhoso não é (risos).

Bárbara: Ou ainda não é também, né?

Hudson: Pra você ter ideia, eu fui gongado cinco vezes pra entrar na sexta! Mas esse processo foi legal, porque eu fui aprendendo, fui vendo porque que eu não tava entrando. Você acaba analisando. Eu gosto sempre de, de… o concurso, ou o lugar que eu quero mandar fotos, eu sempre olho os prêmios anteriores, pra entender. Porque a galera não entende muito. Eles fazem muita confusão.

Eu gosto muito de analogia com música pra explicar muitas coisas da foto, porque eu acho que a música é uma coisa muito popular já na nossa vida, então quando você faz analogia com ela, a galera entende rápido, entende? Então, hoje as pessoas tem que começar a entender, que nem um amigo meu falou: “Hud, tô mandando essas fotos para esses concursos e não tá passando nunca”. Eu falei: “Irmão, você tá mandando hip-hop numa rádio de rock!”. Você tá entendendo? Tem que entender isso, que concurso é isso também. Os concursos são praticamente rádios. Então se é um concurso de arquitetura, você não vai mandar um Fusca. Se você tá num concurso de rua… Você tá entendendo?

Bárbara: E aí você tem que desbravar o próprio edital também.

Hudson: Uhum. Eu também tenho alguns processos, assim. É difícil eu vou fotografar prum concurso, né? Eu vou trabalhando e as fotos vão ficando aí, quando eu vejo que algo meio encaixa em algo, eu mando, não faço o inverso. Não faço algo meu encaixar lá de qualquer jeito.

Bárbara: O lance de montar a exposição e tal, você teve voz em tudo? Como foi essa negociação?

Hudson: É bem de boa com eles. Muito de boas. O MIS é maravilhoso em questão a isso. Eles te dão um apoio muito bom e fica tudo na sua mão, né? Eles mostram pra você o que você tem que… o valor que você vai gastar na sua exposição. E você vai organizando, né? Exemplo: Eu queria uma moldura na minha foto específica. A moldura era cara. Então era mais ou menos uma coisa meio básica, ou eu podia colocar 30 fotos sem moldura ou colocar 15 com a moldura que eu queria, você tá entendendo?

Você tem que ir puxando dali, organizando daqui, mas eles dão toda a liberdade para você pintar a sala do jeito que você quer, você que monta o fluxo, a exposição, a forma como você quer que as fotos apareçam. É bem legal. Eles te dão liberdade total para você poder imprimir as suas características no ambiente também, o que é muito importante. Não adianta você jogar só a foto e ela tá dentro dum universo ali que você nem preparou para ela e aí eu acho que ela fica fora.

E pra falar a verdade, toda a minha trajetória, hoje eu percebo, que foi uma benção não ter conseguido fazer Fotografia, faculdade, na época que eu imaginei que eu queria fazer quando eu tinha 19 anos, porque eu fiz Design Gráfico e tudo foi ficando melhor agora, entende? Eu percebo que eu tenho, não é bem uma vantagem, mas eu tenho algo… As disciplinas que eu fui aprendendo antes me dão uma base muito grande para muita coisa que eu nunca imagino, que eu não imaginava. Então, tipo assim, eu trabalhei como diagramador durante 8 anos. Eu amo diagramar tudo, não importa se é na tela, se é no espaço solto. Então quando eles mostraram para mim a sala, que pra mim era um monte de papel em branco, e falou: “Ó, Hud, aqui suas imagens”, eu falei: “lindo, é como diagramar”.

Então, eu diagramei da forma mais… Eu gosto disso, diagramar é maravilhoso. É você dar uma fluência para os elementos que estão na sua mão, sabe? De início, é uma das funções, mano, que eu fiz que eu mais gostei, que me deu mais noção. Fotografar, pra mim, é diagramar. É eu escolher no espaço, dentro daquele frame, onde cada coisa vai ficar, entende? Então, a diagramação me deu muita base. Muita base, muita. 

E diagramar é isso, você faz caber. O cara te dá uma sacola que cabe 8 camisetas, ele te dá 14 e você vai descobrindo formas de dobrar até caber essas 14 lá dentro. Então é você trabalhar com espaço. Pra mim foi tranquilo, tranquilo demais, eu super gosto mesmo de montar, de ver, de colocar foto, porque eu acompanhei a montagem.

Então, o que acontece? Eu desenhei mais ou menos o jeito que eu quero, mas eu acredito que tudo na estética tem um truque, né? Você fala, você pensa: “Caralho! Ficou foda!”. Na hora que você vai fazer, parceiro, ficou uma bosta. E acontece muito o inverso. Você corta tua ideia porque você já acha que ela é ruim. Quando você executa, você fala: “Mano!”. Então eu acho que na estética, a maioria das vezes você tem que executar para saber se aquilo tá dando, vai dar bem ou vai dar ruim. Mentalmente, você vai ser enganado facilmente, fácil, várias vezes. 

Bárbara: Como foi levar a rua pra dentro do museu?

Hudson: Cara, foi pra mim muito interessante. Na verdade, o texto que eu mandei que… não é uma justificativa, é um argumento para poder estar fazendo a exposição era mais ou menos isso. Eu falava que eu queria colocar os meus lá dentro. Eles precisavam estar lá dentro. Então, foi uma coisa muito valiosa assim pra mim. Apesar de eu não conseguir ter, mensurar como aquilo é grande. Sabe? Quando você não percebe a imensidão do que está acontecendo, do que você tá conseguindo fazer? Entende? Eu acho que eu fiquei muito feliz. Era o dia do aniversário da minha mãe, você acredita? O dia da inauguração. E aí estava todo mundo no museu, tinha tipo 70% das pessoas eram pretas, assim, e isso me deixou feliz. Muita gente que nunca tinha ido. Muita coisa foi legal.

A galera às vezes me perguntava antes da inauguração: “Ô, Hud, eu posso ir?”. Olha, mano, sabe? Eu fico muito emocionado com isso, porque eu vim de um lugar simples onde muitas vezes eu deixo de entrar em lugares públicos por me sentir mal na porta. Você entende? Então quando as pessoas… Eles tinham interesse de ir mas eles tinham medo de se sentirem rejeitados, de sentir que aquele espaço não é pra ele. Então as pessoas vieram me procurar delicadamente às vezes pra isso e eu fiquei feliz de fazer ele entrar num lugar que antes ele não conseguiria. Então o meu trabalho foi um incentivo para ele poder ir e ver que ali é um espaço para ele também, né? Que ele pode entrar, tá lá pra todo mundo. Mas esses lugares tem uma estrutura muito ruim.

Hoje eu percebo que eles tentam mudar. Ainda bem. E ainda bem assim, porque se você for ver um Teatro Municipal. Se eles não correrem, mano, a molecada de 14 anos tá cagando e andando pra aquilo, tio. Vai chegar uma hora que aquilo vai virar um sítio vazio, lindo que só a porra aquilo, mas foi tão elitizado que vai acabar sozinho, foda-se, gente. É isso. A nova geração vem fazendo isso, mano. Já que não é para mim, acabou, não é pra mim, não vou. Quem tem que querer que a gente vá lá para aquilo continuar vivo e fazendo a função dele é o museu. Deixa o museu com muita graça querendo só aquele público… aquele público já tá com 60 anos, mais 20 morre, os novos não vai, acabou.

Bárbara: E também é nosso, né? (Risos) Em geral, essas instituições são públicas, tal.

Hudson: Sim. Eu vejo assim, a galera já tá meio que se coçando, movimentando. Eu acho que é bom, vai demorar pra caceta pra ter uma mudança que para mim seria significativa. Ainda demora um pouquinho, mas tem que começar de algum ponto, né?

Bárbara: Sim. Qual é o lugar da fotografia hoje na sua vida?

Hudson: Ela tá na minha vida, hoje de uma forma diferente, porque a gente vai mudando. Antes, eu percebia que eu ficava muito mais tempo com a câmera. Apesar de que eu tô pensando esses dias, eu quero voltar a estar mais com a câmera do meu lado, né? Voltar de novo a estar com ela em casa, na rua, uma coisa assim. Porque eu sou uma pessoa muito ansiosa, mas muito, muito, muito, muito. Muito assim, de eu ter que medicar até. (Risos) É muita ansiedade. E eu percebo que quando eu tô focado em alguma coisa, tipo, sei lá, jogando videogame, tomando banho ou fotografando, eu consigo diminuir isso. Parece que a minha cabeça, pfff. Então a fotografia me ajuda com isso também, para diminuir essa ansiedade louca que eu tenho. Então ela vai seguir sendo uma terapia, uma função terapêutica, e outras coisas. Minha profissão também, né? 

Eu gosto muito de hobby. Eu acho que hobby é uma coisa muito deliciosa, né? Qualquer um que você pega para você se descobrir, para você fazer, pra você se desligar. A questão é que eu acabei fazendo do meu hobby o meu emprego, então agora eu tenho que arrumar outro hobby. (Risos)

Hoje eu fico me descobrindo como fotógrafo, me descobrindo assim o jeito que eu gostaria de ser visto e o jeito que eu gosto de ser como profissional, entende? Eu não queria ser fotógrafo de um estilo ou de uma coisa só. Sabe? Ai, fotógrafo de rua, ai, fotógrafo de moda, ai fotógrafo… não sei, acho muito… para mim não funciona. De novo a analogia com a música, eu gosto de muitos estilos de música. Pra falar a verdade, de todos, praticamente. Então, se você falar “Hud, forró”, tem bagulho que eu acho foda. “Hud, funk”, tem uma parada que eu acho foda. Hip-hop: foda. Rock: foda. Eletrônico. Então, em cada estilo tem algo que eu gosto. E a fotografia também.

Eu gosto muito de algumas coisas de moda, eu gosto muito de uma estética de rua, eu gosto muito da forma documental que às vezes as pessoas pegam. Então, a fotografia documental eu acho bem legal como você conta algo pelo seu ponto de vista, sabe? Pra mim um exemplo de fotógrafo… Hoje em dia, você você fala: “Hud, você queria ser igual que fotógrafo?”. Eu queria ser que nem o Gordon Parks.

Ele é perfeito, ele é perfeito. Ele faz rua, ele faz documental foda e ele faz moda. Entende? E eu sempre falo isso às vezes com algumas pessoas que eu converso. Por que isso é possível? Porque ele leva ele até o trabalho. Ele não traz o trabalho até ele. Isso faz muita diferença. Porque quando você se leva até o trabalho, teu trabalho vai estar em qualquer trabalho, porque você se levou, você tem uma personalidade onde você encaixa indiferente do tema o teu jeito.

Agora, se você traz o jeito que é feito, se esquecendo de você, você vira uma pessoa meio tendenciosa. Você não consegue ter uma linha estética, porque você tá tentando mudar pra tentar encaixar sua foto em algum campo. Entende? Então é você aceitar o teu estilo, e não interessa. É street? Teu estilo tá lá. É casamento? Teu estilo tá lá. Por quê? Porque você não tá trazendo o job, você tá só levando você.

Eu vou fotografando o que eu acho interessante, o que eu gosto, o que me toca, o que eu percebo que tem alguma coisa ali que eu gosto. Então, o inconsciente sempre tá agindo. O meu, pelo amor de deus. Às vezes eu mostro algumas fotos para algumas pessoas e eles começam a mostrar, a me ajudar a mostrar como meu inconsciente tá presente. Eles começam mostrando coisas de repetições que eu nunca reparei. Então, automaticamente o seu corpo pega, ele vai lá e faz aquilo, né, sem você reparar. É claro que depois algumas coisas inconscientes viram conscientes quando você identifica. Aí você fala: “Ah que legal, então eu vou continuar, vou tentar dar continuidade assim”.

Durante muito tempo eu percebi que minha foto era falando mais de mim do que do assunto que estava sendo fotografado. Eu vejo que isso é inevitável: todo fotógrafo em qualquer foto ele fala dele também. Só que o meu eu sentia que às vezes era 70% eu e 30% o que estava saindo na frente. E aí eu quis… Hoje eu penso muito em como mudar isso, né? Como contar a história do que eu tô vendo, contar uma história deixando eu um pouco de canto.

Eu acho que a fotografia, por mais que é um ato meio ali de uma pessoa clicando, você precisa ter alguém na frente da câmera. Isso já mostra que tem duas pessoas ali, trabalhando, né? O que você tá vendo, você. Só que… Eu já participei de um coletivo também. Só que aí você vai se descobrindo na tua foto e o jeito que você gosta de fazer. Hoje, eu acabo sendo uma pessoa mais solitária, eu prefiro. Eu acho que é super legal ter projetos, onde você tem projetos de coletivos, porque eu acho que quando você tá em coletivo e com pessoas com o mesmo objetivo, só tem a crescer, entende?

Demorou pra mim ver isso, porque tanto na fotografia como no design eu fui aprendendo isso com o tempo. Porque quando a gente começa a fotografar, a gente quer que ninguém toca no bagulho nosso. E no design também. Só que a vida vai trazendo umas experiências pra você, se você deixar, que quando você perceber, fala: “Caraca! Umas 8 pessoas deram palpite, olha só o que transformou e olha o que era”. Se você não negar, você vai perceber que o projeto em coletivo vai deixar mais forte, entende? Ele vai sempre melhorar o que você tá fazendo. Mas tem que saber dividir. Às vezes você não quer coletivo, você não quer opinião ou você não quer trabalhar junto. Você quer fazer sozinho.

Então eu acho isso. A fotografia tem esses dois lados, né? Ela tem um lado muito, muito sozinho, que eu gosto muito também. Eu acho que eu escolhi ela como hobby no início porque é uma, pra mim, é uma atividade de reflexão, muitas vezes filosófica, sabe? Ela ajuda a entender o meu estado aqui na Terra neste momento e a ver as coisas que acontecem. Eu consigo ver de uma outra forma.

interlúdio

Bárbara: Pode não parecer, mas a história de uma técnica é, também, a história da sociedade em que essa técnica surge e se desenvolve. A história da fotografia, portanto, não é só uma narrativa evolutiva de como lentes e aparatos melhoraram ao longo dos anos. É também a história de seus usos e dos problemas de seus modelos.

Por muitos anos, fotógrafos profissionais e amadores lidaram com uma dificuldade extra ao registrarem pessoas de pele escura. Ao focar o desenvolvimento dos seus produtos em uma determinada norma – que eram os tons de pele claros -, as empresas de filmes fotográficos criaram um desafio para a presença de pessoas negras nas fotografias. Muito cobradas por indústrias como as de móveis de madeira ou então as de chocolates, que precisavam que houvesse a possibilidade de os consumidores perceberem nuances em seus produtos, a tecnologia passou a ser ajustada para tons de marrom (e isso diz muito sobre prioridades, não é mesmo?).

Mas fotógrafos negros fotografando pessoas negras aprenderam na marra a fazer as compensações necessárias para registrar aquilo que eles não queria deixar passar. Eles ajustaram a medição de luz, o tempo de exposição e até manipularam as imagens no momento de revelá-las. Essa foi a história de fotógrafos como Gordon Parks e Roy DeCarava.

Ambos criaram imagens importantes sobre a cultura de onde vinham, da presença dos negros na sociedade americana, da segregação e de seus ícones. Gordon Parks percorreu os Estados Unidos fazendo retratos para a revista Life e suas imagens serviram de referência e inspiração para a série Lovecraft Country, lançada em 2020. Em uma dessas fotografias coloridas, está uma mulher negra, com uma menina (talvez sua filha?), esperando na calçada de uma rua. As duas se vestem com vestidos de rendas e babados. Na cena, vemos também que há uma mulher de vestido vermelho ao fundo e um carro preto em movimento. Existem placas de neon acesas ao fundo também , perto de umas casas e, acima das duas figuras, em primeiro plano, lê-se “Entrada para os de cor”. Uma cena banal registrada em 1956 pelo fotógrafo que nasceu no Kansas em 1912.

Roy DeCarava nasceu em Nova York e a sua obra é celebrada pela maneira como ele registrou o bairro do Harlem dos anos 1940. Disposto a criar retratos sérios e artísticos da população negra do seu entorno, ele começou a fotografar justamente naquela década. As suas fotos nas ruas tem uma vibração que também estão nas que ele tirava de artista de jazz. Congelar o tempo em uma imagem e ainda assim o movimento persistir.

Em uma fotografia sua, em preto-e-branco, vemos, de cima, duas crianças. A luz ocupa um terço da foto, enquanto os outros dois terços estão na sombra. Uma das crianças, um menino com uma lata e um graveto na mão, mexe-se na parte clara da foto, olhando para a outra criança, que o segue, mas que está na parte escura. Um registro terno de uma infância que sorri, entre o sol e a sombra, nas ruas de 1952.

Ao contar a história desses fotógrafos e da maneira como tiveram que driblar o racismo – dentro das câmeras, das redações, do mundo em geral -, Teju Cole escreveu que é

como se o mundo, em sua maneira negligente, dissesse, ‘vocês são simplesmente muito escuros’, e esses artistas, intencionados em obliterar esse modo absurdo de pensamento, silenciosamente respondessem ‘mas vocês não tem ideia de quão escuros nós ainda podemos ser, nem o que a escuridão pode conter.’”

Música de encerramento

Esse foi mais um episódio de Pitoresco. Contamos com a participação de Hudson Rodrigues. A pesquisa, o roteiro, a edição e a publicação foram feitas por mim mesma, Bárbara Carneiro. Até mais.


Referências

Boris Kossoy. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

The Gordon Parks Foundation.

Helouise Costa. Da fotografia como arte à arte como fotografia: a experiência do Museu de Arte Contemporânea da USP na década de 1970. Revista da USP, 2008.

Instagram do Hudson Rodrigues: @hudrodrigues_

MoMA. Roy DeCarava.

Museu da Imagem e do Som. Nova Fotografia 2018 | Bambas

Susan Sontag. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Teju Cole. Known and Strange Things. Random House Trade Paperbacks, 2016.

Vox. Color film was built for white people. Here’s what it did to dark skin.


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