Dos livros da Bíblia, minha lembrança mais vívida é do Gênesis. Sei alguma coisa sobre o Êxodo, e domino grande parte do Novo Testamento. Herança obtida através de livros infantis fartamente ilustrados com o momento da criação, algumas conversas com uma tia-avó que tinha sido freira e os estágios não-remunerados como participante do coral da igreja, como aluna de colégio religioso e da catequese às terças de manhã.
No colorido livro do Gênesis, versão infantil, que eu possuía, talvez tenha sido dada importância exagerada à desobediência de Adão e Eva e ao lance de Noé com os animais numa arca. Foram tímidas as páginas sobre uma relação que é fundante no nosso trato dos iguais: Caim e Abel. Irmãos, um se dedicava à agricultura e o outro ao pastoreio. Perante o Pai (ou seja, o Deus do Antigo Testamento), fizeram suas oferendas e Ele demonstrou sua preferência ao cordeiro de Abel sobre os frutos da terra de Caim (uma ingratidão que segue sob análise dos teólogos mais experientes). Nisso, Caim, enciumado, assassina Abel e é punido por Deus com o banimento, mas com uma garantia de que poderá seguir vivo, a partir de uma marca que o indicaria como o protegido de Deus. Nunca mais se ouviu falar dele nem de sua esposa – anônima, no livro bíblico.
Foram as três primeiras temporadas da série Fargo que me fizeram voltar a esse episódio bíblico. Nas três, as relações entre irmãos são centrais, mesmo que não seja, em si, o mote da série. Estamos mais acostumados a olhar para relações mais flagrantemente díspares. A relação de Caim com Deus, por exemplo. Ou para as figuras paterna e materna na Psicanálise. Ou ainda para a relação entre o patrão e os funcionários no capitalismo tardio. Mas olhar para a relação entre irmãos, ou entre os iguais, e para as minúsculas picuinhas que se acumulam em anos de convivência, talvez revele substancialmente mais da nossa natureza do que na nossa relação com um poder instituído (de Deus, do pai, do chefe).
Eu resumiria o mote de Fargo com a ideia de que “o homem nasce bom, é um emaranhado de acontecimentos absolutamente sem noção que o corrompe”. A série é escrita por Noah Hawley, baseada no filme de mesmo nome dirigido pelos Irmãos Coen (que também produzem a série). Por mais esse motivo que a relação fraternal me chamou tanto a atenção, como um aceno aos produtores da série e, se quisermos ir mais longe, um irônico sinal sobre os sentidos de ter que estar tão próximo a seu irmão.
Na primeira temporada, um corretor chamado Lester Nygaard é atormentado por um ex-colega de escola, mas, principalmente pelas comparações que sua esposa faz de seu irmão. A grande causa de queixas de Pearl Nygaard está na velha máquina de lavar roupas e no seu ruído incansável. Se o marido tivesse o sucesso e o dinheiro do irmão, um trocar de máquina e ter a vida suburbana que tanto desejou seria mais fácil. Cansado de cobranças, Lester alia-se a um psicopata que apareceu na sua cidade e decide transformar sua vida de forma que nenhum Walter White botaria defeito. No meio do trajeto, Lester consegue incriminar o irmão, vingando-se por completo de todas as vezes em que se sentira diminuído por ele e pela esposa.
Já na segunda temporada, os irmãos são mais discretos. Pertencentes a um grupo de mafiosos em guerra com outros grupo de mafiosos, esse mais profissionalizado do que a facção familiar, os irmãos Gerhardt são três. O caçula, interpretado por Kieran Culkin (o irmão do Macaulay), aparece praticamente apenas no primeiro episódio. Os outros dois, Dodd and Bear, travam uma disputa sobre o legado da família e seus negócios em Fargo (Dakota do Norte). Dodd, o primogênito, tenta assumir as rédeas da organização após o pai sofrer um derrame, enquanto Bear advoga em favor da mãe ser a chefe da vez. No sexto episódio, o irmão mais velho ameaça com um cinto o irmão mais novo, colocando-se em posição de autoridade como um patriarca nos anos 1970 faria. O ato só é interrompido pelos gritos da mãe que, mais do que preocupada com o bem-estar físico de seus filhos, não desejava ver o poder de seu clã esvair-se por disputas internas, literalmente fratricidas.
Por fim, na terceira temporada, o conflito central da trama é entre dois irmãos, ambos interpretados por Ewan McGregor. Um bem-sucedido financeiramente, o outro desesperado por conseguir uma parcela da fortuna do irmão a partir de um selo de colecionador legado pelo pai. Mais uma vez, a tensão não é entre pais e filhos. Mas, nessa temporada, as aparências enganam muito mais do que McGregor disfarçado. O irmão rico, dono de estacionamentos, conhece a volatilidade da riqueza quando se torna refém de um estranho personagem que usa seu aparato empresarial para lavagem de dinheiro. O irmão pobre, envolvido com uma criminosa que ajudara com processos de liberdade condicional, não vive, como pode-se imaginar à primeira vista, um romance só de fachada.
Nas três temporadas péssimas decisões unem-se a uma dificuldade atroz de os personagens estabelecerem uma comunicação que efetivamente funcione. São poucos os momentos em que esses irmãos não são movidos apenas por suas escolhas, em busca muitas vezes de se dar bem, de seguir ciclos de poder e violência, e de garantir, perante seus iguais, que estão em situação superior a eles.
As vidas desses personagens poderiam ter sido mais fáceis se não estivessem atrelados a esses estranhos elos formados por um compartilhamento de quase metade do material genético. Esse laço eterno e formado por nós de mágoas e conversas mal-desenvolvidas. Movido pela ira ou pela inveja em relação a si, mas também em comparação ao amor de Deus, Caim matou Abel. Mas, se há algo que podemos acrescentar a essa mitologia milenar é que faltou ao Adulto Na Sala ter o bom-senso de apenas aceitar legumes com o mesmo entusiasmo com que aceitou o cordeiro imolado, garantindo aos irmãos a mínima condição de igualdade.
(Preciso confessar que a minha grande motivação para dar o play na série não foi outra que não a descoberta de que Kirsten Dunst havia conhecido seu atual marido no set de gravação da segunda temporada da série. O jeito mais idiota de alguém se interessar por alguma produção televisiva.)
3 respostas para “o resto é contado exatamente como ocorreu”
Excelente texto. Eu adoro tudo do universo Fargo. Da série, a 3a temporada como um todo: o 4o episódio com a história do Pedro e o Lobo, e a participação do Paul Murrane do Twin Peaks. Tem um filme nipo-americano que também se passa nesse universo que eu gosto muito: Kumiko, a Caçadora de Tesouros.
cara, eu tava muito presa a esse argumento dos irmãos (e acabei vendo a série numa ordem heterodoxa por desatenção, então vi a terceira, a primeira e segunda temporadas nessa ordem), mas tem muitas preciosidades nesse caminho mesmo. além do episódio de pedro e o lobo, fiquei maravilhada com o episódio em que a detetive segue uma pista completamente errada e isso se desdobra em uma animação de um robô alienígena…!
Finalmente terminei a segunda temporada – que vi depois da terceira – e vim aqui ler o texto (curiosamente o Ewan McGregor também conheceu a Mary Elizabeth Winstead no set de Fargo e acho que estão juntos até hoje)