minha experiência com o caminho do artista

É possível seguir a proposta do livro O caminho do artista tendo um emprego de 40 horas semanais e ser responsável pela faxina de sua própria residência? Essa foi a pergunta que me guiou por todo o trajeto de 12 semanas criado por Julia Cameron e publicado no Brasil pela Editora Sextante.

Por quê

Algumas amigas haviam seguido o manual (a capa da edição brasileira chama o livro de “a bíblia da criatividade”; sou contra e prefiro tratá-lo como um manual) e contavam sobre a jornada ser transformadora. Comentei a respeito com meu primo em uma conversa sobre objetivos e mudanças de hábito. Decidimos então começar juntos a leitura e as tarefas. Antes de iniciarmos, Stephanie perguntou se podia embarcar nessa conosco e foi assim que passamos 3 meses tentando nos curar de nossos bloqueios criativos.

Escrevo tudo isso num tom um pouco irônico, porque eu não me sentia em bloqueio nenhum. Trabalhando 40 horas por semana, cozinhando minha comida, limpando minha casa, minhas roupas, eventualmente escrevendo textos por aqui e lançando episódios de um podcast, me sentia como uma antropóloga começando um trabalho de campo sobre algo que não me dizia respeito diretamente. Ao contrário dos relatos de Cameron, eu não estava há anos sem desenvolver minha criatividade, estancada em sofrimento por isso.

Mas, ainda assim, o livro funcionou muito bem para mim. Mesmo com um monte de ressalvas que posso fazer sobre ele (e farei logo menos). Foi possível seguir “o trajeto do guerreiro” (forma como meu namorado chamou o livro num estado de sonolência) neste contexto de quem trabalhava de casa. Porém, só foi possível com maleabilidade e algum carinho por mim mesma. Eu não queria que se tornasse um fardo e, nas vezes em que não fiz as tarefas, foi numa pegada de “ah, paciência, Julia Cameron, fica pra próxima”.

Como

O caminho do artista tem 12 capítulos – os passos – que devem ser lidos semanalmente. A sugestão da autora é que esse percurso seja feito em conjunto, com reuniões de checagem em grupos de até 4 pessoas (no meu caso, fomos eu, Sté e meu primo; pulamos algumas vezes por conta de feriados às segundas-feiras). Além disso, a ideia é que por 12 semanas o leitor escreva três páginas diariamente (páginas matinais) e separe 2 horas para um encontro com seu artista interior. Cada semana tem tarefas próprias referentes ao tema do capítulo.

Teve tarefa que me emocionou ao me fazer pensar em pessoas que estimulam minha criatividade e teve a vez em que eu senti ter resolvido um problema de muitos anos ao escrever as páginas matinais numa manhã qualquer. Comentei com a minha psicóloga que me sentia fazendo lição de casa da terapia ao escrever com essa regularidade sobre coisas que ocupavam minha mente. Ela respondeu dizendo que a Psicanálise é também um exercício criativo, e que a elaboração através da fala possibilita a criação de soluções e a resolução de questões. E foi aí que eu entendi qual é a do livro.

Mas nem só de questões mal resolvidas do passado se forma um caderno de páginas matinais. Elas me ajudaram a esboçar o texto que escrevi aqui sobre as drogas em Mad Men e me possibilitaram desvendar o porquê de aprender a surfar nas férias ter sido tão satisfatório. Às vezes, quando me sinto ansiosa, acordo mais cedo no dia seguinte para escrever as três páginas propostas pela autora.

Já os encontros com o artista, que são aquelas duas horas por semana pra mimar a si mesmo (sua criança/seu artista interior), me fizeram comprar um conjunto de 6 cores de guache, juntar vale-refeição pra almoçar o menu degustação do restaurante que eu gosto, dar voltas de bicicleta pelo bairro pro qual me mudei na pandemia.

Algumas coisas que saíram das horas em que eu devia satisfazer meu artista interior

Entretanto

Eu não sou uma leitora de autoajuda. Nunca fui, e não me lembro de ter me envolvido com nenhum outro livro desse gênero. Mas decidi ler O caminho do artista em um momento em que fazia praticamente um ano que tinha começado a frequentar sessões de terapia. Me aventurei pensar que tal gênero faz muito sucesso nos Estados Unidos, país de Julia Cameron, por ser possivelmente mais acessível do que um tratamento terapêutico (no Brasil, psicólogos e outros terapeutas estão incluídos nas práticas do Sistema Único de Saúde, inclusive em serviços ambulatoriais).

No Brasil, inclusive, temos um histórico muito importante sobre o uso das artes em tratamentos de doenças que causam sofrimento psíquico (Mundinho Nise da Silveira aqui!). Além disso, com a extinção de manicômios no país, a criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) favoreceu uma compreensão sobre tratamento psiquiátrico que não seja apenas médico ou hospitalar. Julia Cameron propõe n’O Caminho do Artista a cura da criatividade, mas existe também o inverso: a criatividade como cura.

Saber um pouco do contexto da autora também ajuda em outras questões do livro. O qualitativo “bíblia da criatividade” é quase literal pela quantidade de menções a deus que há em suas páginas. Como agnóstica, me relaciono muito pouco com a ideia convencional de deus propagada por religiões. Ali, então, senti uma resistência minha ao manual. Cameron, porém, avisa que poderíamos entender esse deus da forma como quiséssemos e achei curioso como ela o descreveu como uma força criadora. E se sermos feito à sua imagem e semelhança significa que somos seres dotados de vontade e capacidade criadoras?

Mas ter essa vontade e essa capacidade não necessariamente implica em termos meios de sobreviver no atual sistema econômico só com elas. E esse é outro ponto em que conhecer um pouco do contexto da autora parece importante. Escrevendo em um país que tem uma indústria cultural estabelecida, de fato como uma indústria, conseguir um trabalho como “criativa” parece menos complicado do que no Brasil. Sobretudo hoje, com um governo que não entende trabalhadores da cultura como trabalhadores. E que, ainda por cima, os entende generalizadamente como inimigos (seus e da pátria, seja lá o que isso signifique).

Então, ela conta sobre inúmeros exemplos de pessoas que estavam com bloqueios criativos e conseguiram boas oportunidades depois. Para mim, é um pouco liberal demais essa visão e facilita a gente sentir um certo desgosto e frustração quando a realidade aqui é bem outra.

Afinal

Não saí do processo de O caminho do artista com um romance engatilhado ou um novo grande projeto. Mas senti várias vezes que estava mais consciente sobre minhas vontades e mais disposta a ouvir meus desejos. Tenho dito menos “não” para mim, viciada que sou em só tomar decisões depois de conjecturar coisas demais.

Não sei se isso tem a ver exatamente com ser criativa. Mas passei a pensar na criatividade mais como uma ferramenta de cuidado ou uma forma de fazer fluir ideias e sentimentos presos em mim. Uma maneira de compartilhar coisas com o mundo, de criar conversas novas, de troca com gente que admiro. Foi libertador por um tempo deixar de tratá-la como uma das commodities na nossa economia da atenção.

Além disso

Ao longo do processo, dá muita curiosidade em saber que outras pessoas embarcaram nessa. Provavelmente, a maioria – imagino – meio curiosa como eu, mas sem perspectiva de sair com a grande obra da vida com o método. Muitos devem desistir na metade. Mas fiquei pensando em quantas coisas consumimos que foram produzidas por pessoas saídas de seus bloqueios criativos por conta d’O caminho do artista, cuja primeira edição saiu em 1992.

Não faço ideia de quem mais seguiu os passos da autora por 12 semanas. Porém fiquei pensando em artistas que produziram no isolamento obras de grande magnitude e energia criativa. Obviamente, pessoas que não trabalham em empregos de 40 horas semanais nem devem limpar seus próprios vasos sanitários sozinhas.

O primeiro caso em que pensei foi nos lançamentos folklore/evermore de Taylor Swift lançados em 2020. Em determinada passagem do livro, Cameron conta que foi para uma casa no mato nos Estados Unidos onde conseguiu desenvolver um belo roteiro de cinema. Sem todas as distrações do mundo e sem outro objetivo senão a sua própria criação artística, Taylor entregou, da noite pro dia, o álbum que ficou dois anos seguidos na minha parada de sucessos pessoal. No Brasil, no começo desse ano, Manu Gavassi informou aos fãs no instagram que estava sem celular e seguiu assim por uns nove meses. Nesse período, gravou um álbum com composições suas e um álbum visual em um serviço de streaming. Sem o ritmo frenético das redes sociais e com a chance de se isolar para produzir seu material, ela apresentou uma obra bem acabada para se desvincular da imagem de artista adolescente.

Mas foi o discurso de Michaela Coel quando ganhou o Emmy de melhor roteiro pela série I May Destroy You (uma das melhores coisas que vi na tv esse ano) que me pegou. Ela disse:

Escrevi uma coisinha, na verdade para os roteiristas. Escreva a história que te dá medo, que te dá incertezas, que não é confortável. Eu te desafio. Em um mundo que nos seduz a navegar pela vida de outras pessoas para que possamos determinar melhor como nos sentimos sobre nós mesmos, e a sentir a necessidade de estarmos constantemente visíveis, pois hoje em dia visibilidade parece ser sinônimo de sucesso, não tenha medo de desaparecer – do mundo e de nós, por um tempo, e ver o que vem até você no silêncio.

Julia Cameron, Manu Gavassi, Taylor Swift e Michaela Coel tem histórias e produções muito diferentes. Mas, no fim das contas, apresentam a produção artística não só como um ofício que demanda presença física. A criatividade pode nascer e se desenvolver em todo lugar, a qualquer momento. Mas há algo de muito satisfatório em entregar para ela um espaço íntimo, um ponto de encontro imaginário. E exercer ali esse mistério da experiência humana, o poder da criação.


Comments

2 respostas para “minha experiência com o caminho do artista”

  1. Muito válido programar dias de relaxamento, pra estravasar todo estresse acumulado pelos afazeres, pela pandemia, por muita gente não conseguir ter momentos de criatividade.

  2. […] Dois dos livros que li em 2021 viraram post por aqui. Primeiro, aproveitei que estava reassistindo as temporadas de Mad Men para associar as práticas dos personagens às discussões que o livro Drogas: a história do proibicionismo levanta: mad men e as drogas do consumo. Com algumas pessoas querendo saber como havia sido minha experiência com o livro O caminho do artista decidi também escrever sobre os 3 meses que levei nesse percurso: minha experiência com o caminho do artista. […]

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